Trilha sonora do gueto
O hip hop é uma cultura de raiz negra surgida nos anos 70 em Nova Iorque. Certo? Sim. A parte da história que nem todos sabem é que se não fosse pelo poder de articulação de um jovem porto-riquenho descendente de judeus, talvez essa forma de expressão tão difundida não tivesse surgido no mesmo contexto e, consequentemente, poderia ter feito um percurso diferente nesses últimos 40 anos. A HQ “Ghetto Brother” (recém-lançada no Brasil pela editora Veneta) conta a trajetória deste personagem, tão protagonista quanto os renomados Afrika Bambaataa, Kool Herc ou Grandmaster Flash. Benjy Melendez integrava uma das gangues que se espalhavam pela cidade, a Ghetto Brothers. O clima entre esses grupos era hostil: se um integrante circulasse pelo bairro ocupado pelos inimigos, virava um alvo certo. A violência entre as facções era corriqueira até que a morte de um jovem negro (Black Benjy, dos Ghetto Brothers) e a influência de um ativista dos Pantera Negras (Joe Mpa) fizessem com que Melendez convocasse uma reunião para propor a pacificação. A partir deste encontro, as gangues interromperam as brigas e começaram a promover festas – e, neste contexto, alguns artistas pioneiros desenvolveram a linguagem que reunia os elementos da cultura hip hop: a música rap (com destaque para os papéis do DJ e do MC), a dança break dos b-boys e a arte do graffiti.
A Patuá Discos promove nesta sexta-feira (01 de abril, das 18h às 22h) um evento de lançamento deste livro, com discotecagem de um dos primeiros e mais importantes DJs de rap do Brasil: KL Jay, dos Racionais MC’s. Aproveitamos a ocasião para fazer uma entrevista por email com o autor de “Ghetto Brother”, o alemão Julian Voloj que reside desde 2003 nos Estados Unidos (as ilustrações são de Claudia Ahlering). Leia!
Como surgiu a ideia da HQ?
Minha formação é em fotografia e jornalismo. Inicialmente, eu fotografei Benjy para uma série sobre diversidade judaica, mas nos tornamos amigos e quanto mais eu aprendia sobre a vida dele, mais eu pensava que era uma grande história e devia ser contada. Por quase 40 anos, sua história ficou esquecida e eu queria trazê-la para o mundo. Uma graphic novel era o meio perfeito para contá-la. É como um filme, mas que você pode realizar com pouco dinheiro. Tudo que você precisa é de papel e caneta. Durante a minha pesquisa, as pessoas me disponibilizaram uma grande quantidade de material como fotografias e flyers das festas. Claudia, a ilustradora, usou esse material para recriar o sul de Bronx para a história. Além disso, uma graphic novel é uma mídia fácil de ler. Eu gosto do fato de que os jovens podem se interessar mais facilmente do que por um livro. É claro que meu sonho é ver essa história ver um filme, mas não seríamos capazes de fazer isso sem precisar de muito dinheiro. Agora que o livro está disponível em todo o mundo (já foi publicado em inglês, francês, alemão, espanhol e, agora, também em português), alguns estúdios demonstraram interesse em levá-lo para a tela grande. Dedos cruzados!
Por que tão poucas pessoas sabem que um porto-riquenho é uma pessoa tão importante na criação do hip hop?
Pouquíssimas pessoas sabem sobre as raízes do hip hop no Bronx. Essa cultura se tornou um fenômeno global, mas só agora – com muitos dos pioneiros envolvidos – a história está sendo explorada realmente. Existem algumas razões pra isso. Eu acho que antes de mais nada, lentamente o hip hop é reconhecido como uma forma de arte séria. Pra mim, sempre foi uma forma de poesia urbana, vinda de baixo pra cima e nascida em um ambiente de negligência. Desde o início, esse fenômeno de Nova Iorque envolvia três grupos: negros, porto-riquenhos e judeus. As pessoas não percebem que muitos pioneiros eram judeus, especialmente da cena do graffiti (lendas como Black “Keo” Lethem, irmão do escritor Johathan Lethem) – assim como alguns rappers (MC Serch e os Beastie Boys, por exemplo) e o superprodutor Rick Rubin. Já os porto-riquenhos foram dominantes na cena de street dance (o break): o b-boy Crazy Legs, da Rock Steady Crew, é só um exemplo. De uma certa forma, Benjy representa a história a essência étnica de Nova Iorque: um judeu porto-riquenho, cujo amigo afro-americano foi assassinado e, depois disso, lidera a trégua entre as gangues. O interessante é que, entre os pioneiros do hip hop, a história de Benjy era muito conhecida. Fora desse círculo, no entanto, não era. Quando eu comecei esse projeto, as pessoas me perguntavam: “por que você está fazendo isso?”. Todo mundo conhece uma parte da história, mas ninguém se importava com que ela fosse contada de forma completa. Hoje, seis anos depois, está provado que eles estavam errados. Agora, essas mesmas pessoas se importam com essa parte esquecida da história.
Além do disco dos Ghetto Brothers, qual é a trilha sonora para acompanhar a leitura do livro?
O disco dos Ghetto Brothers é uma ótima trilha sonora para o livro, realmente. Um detalhe interessante: no 40º aniversário da reunião de paz na Hoe Avenue, eu e Benjy organizamos um outro encontro e este evento chamou a atenção da mídia. Um ano depois, o álbum foi relançado. Antes disso, Benjy não tinha uma cópia do álbum sequer. O ativista Black Panther Joe Mpa (que no livro, chama-se Matunami) mais tarde se tornou manager do grupo Cold Crush Brothers, que foi fotografado por meu amigo Joe Conzo. Esse foi um grupo que traduziu o espírito do período, depois das guerras de gangues: as pessoas queriam “paz, unidade, amor e diversão” (“peace, unity, love and having fun”). E se for para escolher uma única música para se ouvir durante a leitura do livro é “The Message”, do Grandmaster Flash – ela representa a atmosfera do livro. Outra curiosidade: Grandmaster Flash menciona em sua autobiografia que ele viveu por um curto período de tempo perto do local onde Black Benjy foi assassinado e que lembra dos Ghetto Brothers, mas nunca se envolveu com as gangues.
Se não houvesse a paz entre as gangues, o hip hop não existira tal como o conhecemos hoje?
Ninguém sabe. É uma especulação e eu não posso imaginar. Mas posso dizer que é exatamente o que Joe Mpa, integrante dos Panteras Negras que virou empresário de hip hop e ativista social, acredita.
Como foi seu contato com Benjy Melendez? O livro é em primeira pessoa, então às vezes dá a impressão de que ouvimos sua voz narrando a história. Ele leu o livro antes do lançamento? Fez algumas observações?
O livro é em primeira pessoa, mas não é voz de Benjy, é a minha voz. Mas ele estava envolvido em todo o processo do livro e nós nos encontrávamos a cada duas semanas para revisar as cenas e páginas. A história é real, mas algumas coisas eu mexi na cronologia dos fatos, nos nomes dos personagens etc. É uma história verdadeira com uma linguagem de biografia ficcional. Quando o livro saiu, eu vi as lágrimas nos olhos dele. Ele ficou realmente feliz em ver a sua história contada em uma graphic novel e eu me esforcei em levá-lo à maioria dos eventos que fizemos em Nova Iorque para que ele recebesse o reconhecimento que merece. Benjy é meu amigo e o livro é meu presente pra ele. Estou contente com o fato de o livro estar disponível agora também no Brasil e mais pessoas vão aprender sobre essa história.
Lançamento da HQ “Ghetto Brother”
Sexta, 01 de abril, das 18h às 22h
Patuá Discos – R. Fidalga, 516, Vila Madalena, (11) 2306-1647
Discotecagem: KL Jay (20h30) + DJs Patuá
Apoio: cerveja Goose Island