Polirritmia do Benim

Foto: Daniel R. N. Lopes (2014)

Até meados dos anos 2000, a espantosa produção da Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou era conhecida exclusivamente pela população de Benim. Com mais de 500 músicas gravadas entre 1970 e 1983, a banda se tornou um fenômeno popular em seu país de origem no período e atravessou todos esses anos em atividade incessante nos estúdios e palcos. A repercussão de sua música, no entanto, não extrapolava as fronteiras e pouco repercutiu para além do próprio território – mesmo nos países vizinhos do oeste africano, os discos circularam pouco ou praticamente nada.

Podem chamar de segredo bem guardado (talvez seja melhor tratar como mais um entre infinitos casos da arte africana que foi silenciado), mas o fato é que a OPRC desfruta há cerca de 15 anos um tardio reconhecimento mundial de sua obra e o público brasileiro tem a oportunidade de não só acessar as centenas de gravação como assistir como a mágica acontece atualmente no palco. A banda se apresenta no Sesc Jazz deste ano, nos dias 20 e 21 de outubro, na Comedoria do Sesc Pompeia. Essa será a sua terceira passagem pelo país: a primeira aconteceu em 2010, no Percpan (Panorama Percussivo Mundial), com apresentações em Salvador e Rio de Janeiro; em 2014, foi a vez do público paulistano conferir o show no Vale do Anhangabaú, gratuito, na programação do Mês da Cultura Independente. Quem viu, sabe: a chapa é quentíssima.

O que alimenta o fogo da Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou são as batidas do vodun – a religião dominante no Benim, que louva mais de 250 entidades e convoca ao transe espiritual a partir do toque nos tambores. A gramática percussiva dessa manifestação é baseada em um alfabeto infinito, algo que se associa ao candomblé no Brasil, à santeria em Cuba e ao vodu haitiano. O mesmo mar por onde navegaram corpos escravizados embalou a viagem de saberes ancestrais que chegaram à América e se transformaram em novas linguagens – de resistência – com suas próprias semânticas em cada região.

A temperatura sobe quando os integrantes da OPRC levam suas referências ao caldeirão rítmico. Há três elementos contemporâneos que se combinam à força ritualística do vodun e resulta em uma estética própria e original da banda: a salsa cubana, o soul estadunidense e o afrobeat nigeriano. O banho-maria constante do ir e vir pela rota do Atlântico é a raiz e o tronco de onde ramificam uma infinidade de gêneros musicais em África e nas América (do samba ao jazz). No Benim, um deles é o que se denominou vodun funk e que teve na Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou a sua principal representação – com impressionante penetração por todo o país e uma inesgotável inspiração que permitiu que a banda lançasse 3 músicas por mês ao longo de 14 anos em atividades nos estúdios do país.

Foto: Daniel R. N. Lopes (2014)

Boa parte desse êxito se deve ao potencial individual de seus integrantes e da química entre eles. Havia muitos compositores na banda. O líder era o cantor e guitarrista Mélomé Clément (1945 – 2012), que atuava energicamente nos estúdios e na administração dos negócios; o guitarrista Papillon (ano de nascimento desconhecido e morto em 1982) tinha importante papel na estruturação dos arranjos e seus fraseados muitas vezes tendiam a um sotaque de influência latina; o baixista Gustav Bentho se destacava pelo acento funk de suas construções; e o vocalista Vincent Ahehéhinnou se notabilizou por ser o especialista em afrobeat na formação. Todos eles (além de vários outros integrantes) compunham, cada um com seu estilo próprio, e a diversidade criativa encontrava unidade na estética instrumental concebida coletivamente e nas bases ancestrais do vodun.

A inspiração farta driblava a precariedade que a banda enfrentava para ensaiar e gravar. Mélomé Clément chegou a articular uma parceria com uma loja de instrumentos musicais no começo dos anos 70, pois os músicos simplesmente não tinham com o que tocar. Muitas das gravações aconteciam em estúdios improvisados nas casas das pessoas, com um gravador emprestado pela rádio nacional e apenas dois microfones para captar toda a massa sonora da big band. Quando se ouve as gravações do período, tanto é impressionante a qualidade alcançada nessas condições quanto é possível flagrar algo fora do lugar em uma audição mais atenta. As músicas eram gravadas normalmente em um único take, com um dos microfones direcionado para captar a voz principal e o outro apontado para o resto da banda posicionada em meia-lua.

Embora tivesse um contrato de exclusividade com a gravadora local Albarika Store, a OPRC lançou compactos de vinil por vários outros selos de forma clandestina – como o Aux Ecoutes, Echos Sonores Du Dahomey, Daho Disco Ambiance e Disques Tropiques. A tiragem dos discos, normalmente, não passava de 500 cópias e os títulos nunca haviam sido lançados fora do Benim. Muito do catálogo da banda que temos acesso hoje se deve ao trabalho do selo alemão Analog Africa, que lançou três coletâneas com dezenas de gravações da banda a partir de 2009 e reeditou o seu primeiro LP (de 1973). Após praticamente três décadas sem gravar, a banda voltou aos estúdios e lançou o álbum “Cotonou Club” em 2012 (com regravações e inéditas). Quatro anos depois, em 2016, saiu mais um disco: “Madjafalao”.

A Radiola Urbana se orgulha de desde sempre chamar atenção à música da Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou. Em 2014, publicamos uma entrevista com o vocalista Vincent Ahéhéhinnou que fizemos durante sua passagem por São Paulo naquele ano. Os shows do Sesc Jazz deste ano foram articulados por nós junto à curadoria do evento, em parceria com a Artéria Produções e a Desmonta Discos. A banda se apresenta com três integrantes originais: além de Ahéhéhinnou, o também cantor Anago Cosme e o saxofonista Loko Pierre. Gustav Bentho, baixista espetacular da primeira formação, infelizmente não vem por conta de problemas de saúde. Um percussionista, um tecladista, um trompetista, um guitarrista, um baixista e outro cantor completam a formação. Vai na fé!

Por Ramiro Zwetsch

Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou
20 e 21 de outubro, às 21h30
Comedoria do Sesc Pompéia – R. Clélia, 93, Água Branca
Venda de ingressos: a partir de 11/10, às 17h (online); e 13/10, às 17h (presencial)

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