Space is the place
Space Charanga! Thiago França oferece um faixa a faixa de seu recém-lançado disco, “R.A.N.”, que já é um marco do jazz brasileiro. Ele aponta as referências das composições: Moacir Santos, Ray Coniff, Charles Mingus, Cedric Brooks, Mulatu Astatke… Nesta quarta, 26-08, tem lançamento “in store” do trabalho na Patuá Discos!
Não basta conhecer apenas um projeto de Thiago França para decifrar sua personalidade musical – ainda que o carro-chefe, a banda Metá Metá, sintetize um bocado da parada. Ele tocou nos discos e foi um músico de destaque na banda de palco do Criolo; integra o trio de jazz experimental Marginals; encabeça o Sambanzo, um balaio meio afro-brasuca, meio jazzístico; é o responsável pela pérola “Malagueta, Perus e Bacanaço” – discão de samba inspirado em conto de João Antônio que, segundo a precisa descrição do disqueiro Edson Carvalho (aka Sr. Johnson), deixa o ouvinte “com gosto de cachaça e ovo de botequim na boca” ao final da audição; sua carne é de carnaval como bem claro fica em A Espetacular Charanga do França, que incrementou o baile contrabandeando algumas cumbias autorais no seu repertório de marchinhas clássicas.
E o que mais? Space Charanga! “Space is the place”, assim falou Sun Ra na música-síntese de um movimento jazzístico de abertura total à psicodelia, ao caos, às influências do rock e do funk, ao afro-futurismo, etecetera e tal. O lema inspira Thiago neste projeto. Seu jeito de fazer jazz é bem brasileiro – não só no CEP, mas em toda estética. Moacir Santos é referência explícita na deslumbrante “Moacíria” e um certo telecoteco sanguíneo corre pelas veias do trabalho, desde o molejo das baquetas de Serginho Machado até o esquema de gafieira que guia alguns dos esmerados arranjos de metais. Anderson Quevedo (sax barítono), Amilcar Rodrigues (trompete e flughel) e Allan Abadia (trombone) completam o naipe. Marcelo Cabral é o baixista.
O caos guia o sexteto nesse trabalho, mas nem por isso falta coesão – o caos é a coesão. “Ngoloxi / R.A.N.” é uma composição em que os quatro sopros parecem trombar como morcegos desgovernados em um quarto escuro. Qualquer semelhança com as dinâmicas de “Ascension” (John Coltrane, 1966) não é mera coincidência – é inspiração mesmo. “Fakechá” transpira reggae. “Abdu” tem um sabor de jazz dos anos 70 da gravadora Blue Note – não por acaso, uma referência também do design do LP, mais um produto caprichadíssimo do selo Goma-Gringa. “Conta”, “Cerca Lourenço” e as vinhetas “Tão Rápido Quanto Uma Paixão de Metrô” e “Enquanto Ficamos Sem Água” arredondam o repertório deste disco, que já tem seu “space” na história do jazz brasileiro. Pode acreditar.
(Por Ramiro Zwetsch)
>>>> Nesta quarta, 26-08, Thiago França faz um lançamento “in store” da Space Charanga na Patuá Discos (R. Fidalga, 516 – Vila Madalena – 2306 1647 – São Paulo), das 18h às 22h.
>>>> Faixa a faixa Space Charanga (Por Thiago França):
O caos sugere ao ouvinte uma escuta menos racional, mais instintiva, sentimental, onde não há conclusão a ser tirada nem a noção de certo e errado. A composição, uma pentatônica em Lá bemol, possibilita no saxofone (tenor) começar a melodia com a nota mais grave do instrumento e explorar a escala até a mais aguda do corpo. Nessa escala, a mão fica numa posição confortável, sem usar as chaves laterais, correndo livremente, permitindo me concentrar apenas na respiração. O ar é o elemento de Zambi, dos Orixás Funfun, é a minha forma de oração.
1b) R.A.N.
A sigla faz menção ao RAP (rhythm and poetry) e significa “rhythm and noise”, ritmo e barulho, que sintetiza a empreitada da Space Charanga. Mantendo o caráter festivo e dionisíaco da Espetacular Charanga presente no ritmo, a Space explora territórios musicais desconstruídos, através da ausência de instrumentos harmônicos e a forma que cada músico aborda seu instrumento, procurando sons, ruídos e texturas em arranjos sem estrutura rígida com bastante espaço para criação coletiva. A composição partiu de um experimento com um teclado chamado Pocket Piano, usando sempre a mesma sequência de notas — dó, ré, mi, fá — juntas, modulando os tons no teclado.
O som me deu a sensação de trilha sonora futurista dos anos 60, parecia aqueles barulhos de raio e tiro dos Herculóides e do Space Ghost. As duas músicas juntas dão a pista das minhas influências e da Space Charanga, do primitivo ao urbano contemporâneo.
No meu meu improviso no sax alto, o último da música, me inspirei muito no Ornette Coleman e o jeito que ele tocava, sem pensar em tom, como se o saxofone estivesse derretendo na mão dele.
2) ABDU
O disco é bastante inspirado no universo musical do Sun Ra, daí vem o “space”, mas também tem outras coisas mais inusitadas. Nessa, a inspiração veio do “Indiana Jones e o Templo da Perdição”, aquele moleque, ajudante do Indiana, que eu não lembrava o nome e achei que “Abdu” era um chute não tão improvável assim, por isso nessa música eu optei por tocar flauta, pra dar um clima mais exótico. Toda a tosquice do filme, o banquete de cérebro de macaco, o ritual de arrancar o coração, é mais cômico que bizarro. O free jazz, eu acho que é um gênero que necessita de um certo humor pra entender. Tem os momentos mais espiritualizados, mas não é só isso. O próprio Sun Ra é uma figura que não dá pra ser levado só a sério, tem um forte tom de sarcasmo e nonsense em tudo que ele faz.
3) ENQUANTO FICAMOS SEM ÁGUA
4) FAKECHÁ
É a única parceria do disco e surgiu de um jeito curioso. Há uns 3 anos atrás participei das gravações de “Fantástico Mundo Popular”, do MC Sombra, produzido por Marcelo Cabral (baixista da Space Charanga) e Daniel Bozzio. Pra música “Mano eu vou ali comprar um chá – parte 2” criei a introdução e ficou tão legal que achei que merecia ser uma música inteira. A intro virou o “refrão”, num processo de sample ao contrário, o sample virou uma música nova, e a gente chamou de original fake, e daí veio o nome “Fakechá”.
Essa é totalmente inspirada na obra do Cedric I’m Brooks, grande saxofonista jamaicano. Os metais levemente desafinados são em homenagem a ele — no melhor sentido possível.
5) CONTA
Ao contrário de todas as outras, essa música é todinha escrita e não tem nenhum improviso. Ela tem esse nome porque a gente tem que tocar fazendo conta, a repetição longa de riffs é prato cheio pra gente se perder no meio dela. O arranjo é um palíndromo, ou seja, ela é igual de trás pra frente, quando o arranjo atinge o ápice ele começa a se desmanchar, formando uma pirâmide sonora. Eu queria fazer uma música onde a cacofonia dos sopros conduzissem tudo como um motor, que desse uma cara de trilha de funk/soul blaxploitation, de cena de luta. Serviu de inspiração a cena final do filme “Black Belt Jones”, com o Jim Kelly (ator/lutador negro que atuou no Operação Dragão, do Bruce Lee), que é uma das coisas mais toscamente fantásticas de todos os tempos, a luta no lava-jato.
6) MOACÍRIA
Homenagem ao maestro Moacir Santos. A genialidade de Moacir está na simplicidade, em buscar no universo popular, regional das canções e cantorias, a inspiração pra uma música instrumental altamente sofisticada. Meu caminho de composição é assim também, encarando a composição como canção, melodias assoviáveis. Outra coisa que também gosto de fazer, que é a base do “Coisas”, é compor utilizando ostinato, uma frase rítmica que se repete, enquanto a melodia caminha. Essa música foi feita em cima de um toque de candomblé chamado “opanijé”, dedicado ao Orixá Obaluaê, que também aparece na música “Atotô”, do Kiko Dinucci, que a gente toca no Metá Metá.
Essa música tem dois “easter egg”, dois segredinhos escondidos. Primeiro: a música segue em uníssono entre flauta e trombone durante quase toda duração, e em uma única nota, aparece um intervalo de segunda menor, um choque estranho, que soa como uma desafinação, um som tenso, parecendo um erro. Isso é uma menção ao arranjo de “Goodbye Pork Pie Hat”, do disco “Ah, Um” (Charlie Mingus), uma das composições mais bonitas de todos os tempos na minha opinião. Nela, a melodia também segue em uníssono entre os saxofones, e de repente rola esse choque de segunda menor na melodia, que é das coisas mais bonitas e humanas da história do jazz.
Segundo: tem uma pausa meio esquisita no final, num tempo que não dá pra contar. Isso eu aprendi com o Mulatu Astatke quando eu toquei com ele na tour com o Criolo, em 2012. várias músicas dele tem isso também, um momento que tem uma pausa que sai do ritmo da música. A gente ficava contando o tempo e às vezes parecia um ou dois tempos a mais dentro do compasso, e ninguém entendia nada, até que ele explicou: “é uma respiração — toca, para, respire fuuuuundo… depois volta. vai dar certo”. E aí a gente entendeu e realmente deu certo.
7) CERCA LOURENÇO
“Cerca lourenço” é uma expressão que eu ouvi muito do pessoal mais velho do samba, do Rio e de BH. É aquela situação em que a pessoa fica ali de butuca, esperando uma situação se resolver pra tirar proveito. Diferente do “joão sem braço”, que tem um caráter de se fazer de bobo, “cerca lourenço” tem mais a ver com a arte de espreitar, sem levantar suspeitas, até o momento de agir. A conexão é porque essa música tem vários espaços em branco, que a melodia fica na espreita esperando pra aparecer. Essa música é mais uma de uma série de composições em que eu uso uma escala hexatônica (seis notas), simétrica, onde os acordes podem caminhar em qualquer direção que a escala não se altera e todas as notas valem. Usei essa escala em “Capadócia” e “Xangô da Capadócia”, do Sambanzo, e agora também em “New Orleans maroto sujão”, que tá no disco que eu gravei recentemente em parceria com o Serginho Machado, baterista, que também está na Space Charanga. Em breve, novidades sobre esse projeto novo.
O Serginho é um cara incrível, que tem um entendimento profundo de ritmo; geralmente eu nunca falo nada pra ele, só de ouvir a melodia ele saca o caminho. Nessa música, falei que era um samba ruim, “samba de quem acha que a capital do Brasil é Buenos Aires”, como os norte-americanos gravavam nos anos 60, meio duro, desengonçado, ele sacou na hora.
E tem outra coisa. eu adoro Ray Coniff, de verdade, acho muito estiloso. Piro muito na sonoridade dos discos velhos dele, dos uníssonos épicos da versão do “Besame Mucho”, tem um lance picareta no melhor estilo Hugo Carvana que só ele sabe fazer. A segunda parte do “Cerca Lourenço”, quando a melodia veio na cabeça, eu ficava imaginando a orquestra do Ray Coniff tocando em uníssono, sopros e voz juntos, um negócio vibrante, eu curto mesmo. Essa música só teve um take no estúdio, e toda vez que a gente toca, sai diferente, rolou muita coisa ali no momento. Só depois, ouvindo em casa, eu me dei conta o quanto parece com esse arranjo:
https://www.youtube.com/watch?
8) TÃO RÁPIDO QUANTO UMA PAIXÃO DE METRÔ
Outra digressão, agora fechando o disco. Acho o metrô muito romântico, gosto de andar de metrô, quem dera o nosso fosse proporcional em extensão ao de outras cidades do mundo… O metrô tem um lance incrível, porque a gente vive em bolhas aqui em São Paulo, e numa cidade onde a maior dificuldade é se locomover, é ali que todo mundo se mistura e você vê gente de toda parte, de todos os tipos. E, em meio a esses encontros inusitados, de vez em quando rolam essas paixonites de metrô, que dura geralmente uma meia dúzia de estação, até alguém saltar no seu ponto. É uma inspiração meio ingênua, quase esquizofrênica de tão ingênua… Mas claro que também com uma certa dose de ironia no título. Essa valsa saiu de improviso, no final da gravação, quando a gente tava se arrumando pra ir embora. Compus arpejando a melodia em cima de uma sequência harmônica bem tradicional de choro, pensando numas imagens do final do século XIX. Gosto dessa sensação pra acabar o disco, num estado de suspensão, inconclusiva, deixando no ar que algo mais está por vir.
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