Samba na veia
#foratemer
Existem golpes e golpes. “Golpe de Vista” é o terceiro disco de Douglas Germano. Você pode até não conhecê-lo de nome, mas se você já ouviu Metá Metá, “Encarnado” ou “A Mulher do Fim do Mundo” e gostou, provavelmente já foi fisgado por sua poesia. É dele, por exemplo, a autoria de “Maria de Vila Matilde” — que Elza Soares transformou em um hino feminista ao gravá-la em seu trabalho mais recente no ano passado, ponto altíssimo no disco e no show. Se liga na violência, na alma lavada, na precisão, no papo reto, no catiripapo certeiro na orelha dos machões: “cadê meu celular / eu vou ligar 180 / vou entregar teu nome / e explicar meu endereço / aqui você não entra mais / eu digo que não te conheço / e jogo água fervendo / se você se aventurar / eu solto o cachorro / e apontando pra você / eu grito: péguix guix guix guix / eu quero ver / você pular, você correr / na frente dos vizinhos / ‘cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”. Vixe!
Essa mesma violência de cinema aparece também em “Damião”, gravada por Juçara Marçal em “Encarnado” (2014). “Dá neles, Damião / dá sem dó nem piedade / e a agradece a bondade e o cuidado / de quem te matou / dá neles, Damião / e devolve o hematoma / bate mesmo, até o coma / que essa raiva passa nunca, não / sangue e suor pelo vão / sentir mais a dor, vingar / ver respingar o pavor / quem bateu, levar”. Mano do céu, que letra, você vê a cena, já até pressente a essência da história mesmo sem que ela não seja explícita quanto à sua inspiração — Damião Ximenes Lopes é um personagem real, morto por espancamento em uma casa de repouso em 1999, no Ceará.
O músico é também parceiro de Kiko Dinucci em um punhado de músicas, gravou com ele o disco “Duo Moviola” (de 2009) e assina composições lançadas (além de tocar e cantar) no disco “Pastiche Nagô” — de 2008 e com sua versão em vinil finalmente disponível neste ano.
“Maria da Vila Matilde” reaparece em “Golpe de Vista”, com outro arranjo, o samba mais assumido na forma (e meio disfarçado na versão da Elza). Todo o disco, aliás, é samba por inteiro. Essa ideia está nas letras, quase como um discurso: “eu faço samba”, grita Douglas Germano nas entrelinhas de cada verso. O ritmo engrossa esse coro: violão, cavaquinho, caixinha de fósforo estão em todo lugar. Mas não é esse sambinha aí, no diminutivo das FMs e da TV aberta — tampouco é o de raiz, das rodas, da avenida. É um samba de autoria, é do cara, tá na cara, tem a cara dele, um tapa na cara. Tem também nó na garganta, sangue na veia, embrulho no estômago, não é facinho.
O violão é outra parada: pode até evocar o mistério de Caymmi ou a inquietude de João Bosco, mas corre pelas próprias cordas — é dedilhado por uma via de mão única com colisões, entroncamento, tráfego quase sempre intenso, as notas graves fazem linhas de baixo no primeiro plano dos arranjos e o os acordes desvendam harmonias sabe-se lá de onde. Tem também o coro que canta junto em várias das músicas: muitas vozes, um berro de fúria que encorpa as letras e não deixam o ouvinte escapar de seus significados. Há muito mais: como cada breque é um corte de cena em “Zeirô, Zeirô”; como a letra da faixa-título traduz a essência do disco: “meu samba é o cavaquinista / quando a corda sol estourar / meu samba é um golpe de vista / termina onde quer começar / meu samba é ruim da cabeça / meu samba até manca pra andar”; como o riff na abertura de “You S/A” recorre a um elemento onipresente em “Rei Vadio” (discos com composições de Nelson Cavaquinho lançado por Romulo Fróes também neste ano) e contribui para uma narrativa que envolve vários discos lançados pelo chamado Clube da Encruza (além de “Encarnado” e “A Mulher do Fim do Mundo”, os discos do Passo Torto, do Metá Metá, do Rodrigo Campos, do Thiago França etc.); como o futebol das antigas (não o da CBF ou da FIFA) é evocado aqui e ali, como um prato cheio de inspiração para crônicas do cotidiano…
“Golpe de Vista” é um discaço! Radiola Urbana recomenda demais e torce pelo lançamento em vinil!
#foratemer
Download gratuito, audição e compra do disco no link: http://douglasgermano.com.br/discos/
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