Perfeição tropical
Jorge Ben é sempre uma boa companhia e, durante o confinamento, há trechos de letras que soam como mantras pra gente lidar com esse pesadelo. Positividade, espiritualidade, delírios poéticos, galanteios inspirados, negritude, futebol, devaneios cósmicos e a tradução perfeita das mais profundas angústias humanas se emaranham na lírica do compositor – sempre embalada pelo mistério do suingue de sua batida e suas afinações ao violão.
Há em “Porque é Proibido Pisar na Grama” (do disco “Negro é Lindo”, de 1971), especialmente, versos que servem para descrever nossos tormentos frente à pandemia: “acordei com uma vontade de saber como eu ia / e como ia o meu mundo”, “preciso falar com alguém / que precise de alguém pra falar também” e “preciso ter fé em Deus / e me cuidar e olhar a minha família” parecem a síntese da agonia que vivemos.
A Radiola Urbana se serve desta inspiração infinita para chamar atenção para a assombrosa produção do bardo carioca entre 1963 e 1976, algo muito raro na música brasileira e do mundo. Com 13 discos lançados em um intervalo de 14 anos, ele mantém um nível absurdo de criação com inovações, reinvenções, onipresença e transformações que contaminam toda música brasileira como um vírus do bem.
A estreia com “Samba Esquema Novo”, em 1963, é um espanto. De onde vinha aquele violão, que não era bossa nova, não era samba, não era soul, não era africano – e era tudo isso ao mesmo tempo? Em “Rosa, Menina Rosa”, ele nos ajuda a decifrar a esfinge sônica que se erguia a partir dali para virar a música brasileira do avesso para sempre: “pois o meu tem mistério / mas é gostoso de sambar / se você gosta de samba / você vai ter que balançar”. Os três discos seguintes – “Sacudin Ben Samba”, “Ben é Samba Bom” (ambos de 1964) e “Big Ben” (de 1965) – dão vazão a este modelo inicial e, se não são tão inovadores na forma, mostram o artista tinha conteúdo para manter um ritmo de produção incessante nos primeiros anos da carreira.
“Bidú – Silêncio no Brooklin” (1967) é a primeira ruptura: Jorge faz sua primeira experiência com a guitarra elétrica e, escoltado pela banda The Fevers, se aproxima da jovem guarda tanto na sonoridade como na temática das letras. “Menina Gata Augusta” (parceria com Erasmo Carlos) e “A Jovem Samba” são exemplos de como ele flerta com ícones da onda “é uma brasa, mora”. Já o LP de 1969, “Jorge Ben”, o conecta definitivamente ao recém-nascido tropicalismo: tanto a capa de Alberi (colorida e tropical) anuncia essa associação, como a presença do maestro Rogério Duprat como arranjador de duas faixas (“Barbarella” e “Descobri que Sou um Anjo”) traz uma assinatura inconfundível do movimento. É também nesse trabalho que se inicia a parceria com o Trio Mocotó, formado pelos percussionistas Nereu Gargalo, Fritz Escovão e João Parahyba.
Dali em diante, é um disco melhor que o outro: “Força Bruta” (1970) é o auge da receita de Ben com o Mocotó, o auge criativo baseado quase totalmente em voz, violão e percussão; “Negro é Lindo” (1971) assume o discurso em voga da exaltação à negritude; “Ben” (1972) combina hits eternos (“Taj Mahal” e “Fio Maravilha”) com joias de sua crônica lúdica (“O Circo Chegou”)…
Aí chegamos em “A Tábua de Esmeralda” (1974), um capítulo à parte. A imersão de Jorge na cultura da alquimia eleva sua poética a um novo patamar e suas reflexões existenciais encontram um nível transcendental em “Errare Humanun Est”. A negritude (“Zumbi”), o amor não correspondido (“Cinco Minutos”) e a positividade (“Eu Vou Torcer”) também continuam reverberando no caldeirão mágico do compositor. O violão vai além em “O Homem da Gravata Florida”.
Na publicação da coleção “O Livro do Disco” sobre “Tábua”, Paulo da Costa e Silva escreve sobre a canção. “ ‘O Homem da Gravata Florida’ começa com o violão de Jorge atacando acordes ritmados numa região inusitadamente grave para o registro padrão do instrumento. Como acontece com a gravação de muitas outras canções (‘Que Nega é Essa?’, ‘Moça’, ‘Quem Cochicha o Rabo Espicha’), as cordas foram afinadas de acordo com outra configuração, de modo que o violão adquire um timbre percussivo, tornando-se uma espécie de tambor tocado a golpes de palheta. Ao mesmo tempo, esse violão-tambor não segura propriamente o ritmo, mas se movimenta na faixa dos contratempos durante boa parte do percurso da canção, delineando frases rítmico-melódicas de timbre e desenho peculiares. A voz entra deslocada da cabeça do compasso, no pulso fraco, trazendo, nesse início, a sensação de um conjunto disperso que subitamente ganha coesão – e a ganha, justamente, sobre a palavra ‘homem’. A partir daí, o reforço do baixo, guitarra e bateria dá nitidez à levada rítmica e oferece ao ouvinte a percepção de um fluxo a ser seguido.”
Em entrevista à Revista Trip, em 2009, Jorge Ben explica que “O Homem da Gravata Florida” se refere ao alquimista suíço-alemão Paracelso (1493 – 1541). “O pai dele era famoso, médico, aquele médico que mexe com plantas. Ele herdou do pai isso, todo o conhecimento dessa medicina, que se chama agricultura celeste”, diz o artista, em entrevista ao jornalista Pedro Alexandre Sanches. “A planta é plantada e colhida de acordo com o sol, com a lua e as estrelas, na época tal. Com essas plantas, Paracelso curava as pessoas. E, naquela época, imagina ele, um médico, curava tanta gente que os médicos que estudavam nas grandes faculdades ficavam na bronca. Era tachado de feiticeiro, tinha que fugir de cidade em cidade. Uma vez, um cônego, prefeito de uma cidade, estava morrendo, nas últimas. Ninguém dava jeito e chamaram Paracelso. Em três dias voltou a cor, o sangue correndo, o cara começou a andar. Foi aquele alvoroço. Queriam botar ele na fogueira por isso. E ele era reconhecido porque usava uma echarpe colorida.”
O repertório tem pelo menos mais três referências explícitas à alquimia: a primeira faixa “Os Alquimistas Estão Chegando”, “O Namorado da Viúva” (dedicada ao alquimista francês Nicolas Flamel, que viveu entre 1330 e 1418) e “Hermes Trismegisto e sua Celeste Tábua de Esmeralda” – Hermes Trismegisto foi um legislador e filósofo egípcio, também dedicado à prática, que, estima-se ter vivido por volta de 1300 antes de cristo.
No ano seguinte ao “Tábua”, Jorge Ben experimenta um milagre musical na companhia de outro gênio da raça. Ele e Gilberto Gil gravam um disco de improvisação a partir de canções já gravadas do repertório de ambos e o resultado é um delírio inspiradíssimo de cordas vocais e acústicas. Canções como “Filhos de Ghandi” e “Nêga” (do Gil) e “Morre o Burro, Fica o Homem” e “Quem Mandou (Pé na Estrada)” (de Ben) são reinventadas em arranjos em que as músicas se estendem às vezes por mais de dez minutos. A história por trás do encontro é preciosa. O importante executivo da indústria fonográfica André Midani conta em seu livro, “Música, Ídolos e Poder – do Vinil ao Download”, como tudo aconteceu. Eric Clapton estava no Brasil e Midani o convidou para um jantar em sua casa com Jorge, Gil, Caetano Veloso, Rita Lee, Erasmo Carlos, Nelson Motta e Cat Stevens.
“O Eric chegou com uma magnífica guitarra branca. Gil, Jorge e Stevens estavam com seus violões ou suas guitarras. Sentados em círculo no chão. Jorge, Gil, Stevens e Clapton deram início a uma incrível jam session. Cat Stevens foi o primeiro a sair: ‘eu não sou guitarrista pra enfrentar isso’. Pouco depois, foi a vez de Clapton largar sua guitarra e se transformar num espectador fascinado. De tal maneira que ficaram Jorge e o Gil tocando um frente ao outro, visitando mundos musicais estranhos e desconhecidos para mim, um comum mortal que assistia ao concerto como a um desafio entre cavaleiros medievais africanos. O Gil improvisava, dava voltas de assustadora virtuosidade, enquanto o Jorge, impávido, conservava a sua essência fundamental, que é o ritmo. De vez em quando, à custa de vertiginosas manobras, Gil se apoderava do ritmo por minutos, que Jorge retomava; outras vezes, seguravam o ritmo juntos. Minha sensação era que tinham se fundindo por uma força magnética poderosa. (…) Minutos depois, antes que todos fosse embora, e ainda celebrando aquela festa, pedi aos dois que entrassem em estúdio o mais rápido possível para registrar aquela importante colaboração artística (…). Dali nasceu o antológico álbum duplo ‘Gil & Jorge’.”
Jorge Ben fez 78 anos do domingo 22/03 e Gilberto Gil, aliás, publicou o seguinte depoimento em suas redes sociais. “Jorge Ben Jor foi o primeiro a trazer as palavras das línguas africanas e trazer uma rítmica que contemplasse os ritmos africanos. Depois de ouvir Jorge pela primeira vez, senti que não havia necessidade de continuar como compositor. Bastava cantar e interpretar aquelas músicas e colocá-las na perspectiva de criações futuras dele a preencher o meu espaço criativo.” Imagina? Um gênio como Gil e talvez o mais completo artista da música brasileira (excelente compositor, cantor, letrista e violonista) cogitar parar de criar por causa do impacto da música de Jorge Ben? Sorte nossa que ele não só não parou como ambos se uniram em “Gil & Jorge”.
Também em 1975, Ben lança “Solta o Pavão”, que estabelece uma ponte entre a musicalidade de “A Tábua de Esmeralda” e “África Brasil” (1976): a alquimia ainda é um assunto em músicas como “Assim Falou Santo Tomás de Aquino” e “Luz Polarizada”. O álbum também marca o começo do esforço do artista em experimentar uma nova sonoridade, que resultaria no uso da guitarra elétrica no disco seguinte. “‘Solta o Pavão’, já foi tocado em um Ovation, aquele violão amplificado que era o meio do caminho entre a guitarra e violão, mas tinha som de acústico. Quando eu fui gravar o ‘África Brasil’, nós tentamos fazer o mesmo, mas realmente não soava bem porque era muita gente fazendo barulho: duas baterias, dois baixos, metaleira, dois teclados, tudo duplo! E toda aquela percussão”, disse, em entrevista a Marcus Preto para a revista Rolling Stone, em 2007.
“África Brasil” é um novo auge. Alquimia (“Hermes Trismegisto Escreveu”), negritude (“Zumbi”, “Xica da Silva”) e futebol (“Umbabarauma – O Ponta de Lança Africano”, “Camisa 10 da Gávea) formam o tripé lírico do trabalho com esse sonzão que o artista descreve no depoimento acima, com banda grande e eletricidade, além de uma influência mais explícita do funk norte-americano e dos ritmos africanos. A página Quintessência – Música Atemporal Brasileira resgatou no último domingo uma entrevista em que o artista manifesta insatisfação com o resultado do trabalho. “O lançamento de meu disco ‘África-Brasil’ foi a maior falta de respeito profissional. A Phonogram lançou o disco sem me consultar – eu estava na Europa, na época, e eles não quiseram nem saber. Mandaram ver, modificando muita coisa. Até a capa não foi a que eu tinha escolhido – essa que está nas lojas é horrível. (…) Tive o maior cuidado com as gravações, já sabendo das limitações do Estúdio Haway, onde o disco foi feito. Queria participar da mixagem e já tinha apresentado sugestões para a capa. Pois bem: quando cheguei de viagem encontrei o disco pronto, mal mixado, com uma capa que não tinha nada a ver com o que eu queria.”
Apesar da insatisfação do músico, o disco é um dos mais reverenciados de sua obra. Em 2002, o título aparece em 22º lugar na lista de “discos mais cool” de todos os tempos da revista Rolling Stone norte-americana e é o único brasileiro selecionado.
13 discos excelentes em 14 anos, sem oscilações: só Jorge Ben alcançou isso em um período tão curto e influenciando e se deixando influenciar por quase tudo que acontecia na música brasileira do período: bossa nova (começou tocando no Beco das Garrafas, sob escolta de Meirelles e os Copa 5), samba-jazz (teve várias músicas regravadas por importantes grupos do gênero), jovem guarda, tropicália, samba-rock e black rio.
A Radiola Urbana oferece a playlist acima com mais de 3 horas de música da fase 1963-1976 e recomenda mais dois conteúdos complementares para esse pacotão do Ben. O primeiro é a mixtape da Mary G, somente com outros intérpretes cantando as músicas de Jorge. Aqui é interessante notar como sua influência se espalha por vários gêneros musicais brasileiros dos anos 60 e 70 e também conhecer composições dele que ele não chegou a gravar – “Speed” (com Sônia Santos), “Rei do Maracatu” (parceria com Gilberto Gil, na voz de Cyro Aguiar) e “Confiança” ou “Tenha Fé Pois Amanhã um Lindo Dia Irá Nascer” (nas versões de Adauto Santos e Originais do Samba).
Pra completar em grande estilo essa imersão, confira a série de programas de rádio “Imbatível ao Extremo”, do Instituto Moreira Salles, com 10 episódios que destrincham a obra do mestre com mais de 5 horas de conteúdo e depoimentos de gente como Caetano Veloso, Jorge Mautner e Tárik de Souza. Clique aqui para ouvir!
Finalmente, a ilustração que estampa este post é do infalível MZK.
Jorge Ben é cura. Ouça sem moderação!
(Por Ramiro Zwetsch)