O cacique da tribo

É visível a mudança de aspecto no rosto do rapper Q-Tip quando se fala em A Tribe Called Quest. Enquanto ele se mostra falante, solto, expansivo, ao explicar o próximo projeto que elabora em seu estúdio caseiro, o clima muda imediatamente quando se fala da antiga banda. Quem viu o documentário “Batidas, rimas e vida: as viagens de A Tribe Called Quest” entende o porquê: o grupo terminou devido ao relacionamento turbulento entre dois integrantes, Phife Dawg e o próprio Q-Tip.

Ainda assim, foi surpreendente ver este último fazendo fãs da Tribe perderem o juízo e até chorarem durante o Festival Batuque, no SESC Santo André. Mais inesperado foi ouvir Q-Tip cantar as partes em que Phife rima em quase todas as músicas. Foi o mais próximo de um show da Tribe que os brasileiros puderam testemunhar aqui. Que show, diga-se de passagem. Além dos clássicos do antigo grupo, o rapper incorporou perfeitamente ao repertório os hits de seus álbuns solos, exclusivamente dos discos “Amplified”, de 1999, e “The Renaissance”, de 2008 – as músicas mais experimentais de “Kamaal, the abstract”, lançado em 2009, mas gravado anos antes, ficaram de fora. Q-Tip trouxe uma banda de apoio simples, apenas baixo, guitarra, bateria e um DJ. Os instrumentistas se limitavam basicamente a dar mais peso às bases que saíam dos toca-discos. Até porque não havia dúvidas de que a alma da apresentação era o próprio MC. Q-Tip proporcionou uma das melhores performances de um rapper por essas terras. Sozinho, conduziu a platéia por uma hora e meia de nostalgia que provocou desvario nos mais empolgados. Foi um show realmente memorável. Antes de tudo isso, após a passagem de som, o Q-Tip parou por um minuto para falar com empolgação do seus próximos projetos e com resignação sobre a Tribe.

Foram quase 10 anos entre o lançamento de “Amplified”, seu primeiro album solo, e “The Renaissance”. Como foi ter essa música pronta sem poder lancer por causa de gravadoras?
Eu apenas fiz, sabe? Não foi como se eu estivesse parado por 10 anos. Gravei e não saiu na época, então acabei gravando um outro disco nesse meio tempo – que também não saiu. Então, este estava meio esquecido. Mas “The Renaissance”, tirando uma ou outra coisa que fiz em outra época, gravei e consegui lançar.

Este tempo foi bom para o seu processo criativo?
Sim, no final das contas foi bom porque estou tranquilo agora. É apenas complicado lidar com gravadoras, as pessoas com quem você trabalhou e ter de mudar algumas coisas que já fez. Mas estou tranquilo.

Você parece confortável rimando em “The Renaissance”, quase feliz por fazer aquilo, sabe?
Sim, adorei fazê-lo.

Você se sente assim em relação ao hip hop?
Estou feliz comigo. Tem coisas que ouço no hip hop e gosto, algumas canções, mas, obviamente, existem coisas que não gosto. Mas tudo é assim, acho. No geral, estou tranquilo. Esse é o maior objetivo: deixar Q-Tip tranquilo. Se isso acontece, está tudo bem.

Você sempre foi um multiartista no hip hop: produz, rima e discoteca. Qual dessas atividades é sua preferida? Qual te dá mais prazer?
Gosto quando faço todas ao mesmo tempo. Bem, não consigo fazer todas de uma vez, mas seria muito bom se conseguisse. Quando faço qualquer uma dessas coisas me divirto tanto que não consigo dizer de qual gosto mais. Se tivesse que escolher, acho que seria criar música. É o melhor pra mim. Adoro resolver uma composição. Posso ser meio que uma tartaruga. Gosto de levar o tempo que for necessário pra fazer. Gosto dessa ideia de criar, acho legal. É aí que entra a história de Q-Tip estar tranquilo novamente. Então, gosto de criar, é minha atividade favorita.

Como funciona seu processo criativo agora?
Trabalho no meu estúdio-casa/casa-estúdio. É uma combinação de ambos: meu lar é meu estúdio. Posso escutar algo o dia inteiro por 8 horas ou fico mexendo com certos timbres em particular. Mas sempre sei qual o é o objetivo final, musicalmente falando. Neste momento, estou animado com meu projeto novo. Estou trabalhando nisso agora e tem sido ótimo.

Qual é o projeto novo?
Ainda estou decidindo o título. Pode ser “O último Zulu” ou apenas “O Zulu” – algo com Zulu no meio. Estou animado com isso, deve ser lançado ano que vem.

Obviamente, existe uma relação com a Zulu Nation. Você se considera o último daquela geração?
Bem, tem essa relação, mas também minha descendência é de zulus sul-africanos. É minha linhagem familiar. Não é que eu seja o último zulu, mas se trata de um álbum conceitual que envolve um personagem. Ele tem uma certa visão de mundo e, a medida que este mundo progride numa velocidade absurda, algo meio futurista, percebe que não sabe o que fazer com estes conceitos antigos que ele carrega consigo. Ao longo da narrativa, ele vê que estes conceitos se aplicam e o ajudam neste mundo novo. Mas ele se questiona o tempo todo sobre si próprio, tem dúvidas, se isola. Acho que todos podem se relacionar com a história. Sabe aquele período em que você é mais impressionável, na infância ou adolescência? Quando você envelhece, olha pra trás e se sente meio distante daquilo. Acho que todos passam por isso, mas percebem que, se você olha lá no fundo, não há muitas diferenças. Todos passam pelas mesmas sensações, emoções, alegrias. O álbum é uma metáfora disso tudo.

Foi importante pra você saber mais sobre sua própria descendência?
Sim, porque quando você investiga isso é mais uma informação sobre você. Descobri que tenho família em Guiné-Bissau e na África do Sul, de tribos Zulus, da Mongólia. Então, é interessante porque você descobre muitas respostas a respeito de quem você é. Quando vai mais fundo, num rastro específico, é possível descobrir respostas para questões que te afligem hoje. A gente olha ao redor e vê arranha-céus e a internet. Tudo parece estar se movendo tão rápido e progredindo. Mas, não é assim. Quando você olha para sua história percebe que as coisas ainda são muito parecidas, ainda que em realidades diferentes. Entende o que estou querendo dizer?

Sim, você está estabelecendo uma diferença entre desenvolvimento tecnológico e desenvolvimento moral ou cultural.
Exatamente. Então, acho essas coisas interessantes e não vejo ninguém tocando no assunto no hip hop. Sinto que isso está presente no mundo inteiro. Todos tem essas perguntas sobre si. Revoluções, corrupção, o esgotamento dos recursos naturais, tudo isso acontece e leva a um questionamento das pessoas sobre o lugar deles na sociedade ou na família e também no mundo. É este o conceito que quero desenvolver no hip hop. E, veja só, está pronto pra isso?

Não.
Vou fazer uma versão do álbum em espanhol. Originalmente, queria fazer em português.

Sério?! Por quê?
Porque eu adoro a música, sou fascinado por ela. Adoro a aspereza da língua. O jeito que imaginei, musicalmente falando, os timbres que quero usar, é um pouco sombrio e tal, achei que, foneticamente, soaria interessante em português. Mas também pensei que seria interessante fazer algo que pudesse atingir outras partes do mundo, sem ser mais um americano bobo que não fala sua língua. O que eu sou: um americano bobo que não fala a língua de vocês. Mas, não quero deixar isso me conter. Quero gravar em português, francês, espanhol. Estou muito animado.

Como você pretende traduzir tudo?
Bem, vou contratar alguém e pagá-lo pra fazer isso, como um capitalista de verdade! (risos)

E você vai cantar nessas línguas?
Bem, sim, porque não? Vai ficar legal. Bem, é um objetivo ambicioso. Gosto de mirar nas estrelas e acertar na lua. Se eu conseguir fazer apenas uma versão, não me culpe. Mas quero mesmo fazer várias.

Ah, mas é muito legal você tentar.
Isso. Vou me esforçar.

Já que falamos de música brasileira, você já usou algum disco daqui numa de suas produções?
Sim, eu adoro. Sou um grande fã da música. Não sei explicar, me toca de uma maneira diferente. Adoro Milton, Gilberto Gil. Estou um pouco obcecado pela música brasileira. Mas tento descobrir uma maneira de combiná-la ao que estou fazendo para que ainda tenha apelo, não quero alienar os fãs mais novos. Mas quero sempre colocar algo diferente na minha música, que seja interessante. O desafio é como fazer isso. Essa é uma das coisas em que fico trabalhando no meu estúdio caseiro.

Você sabe que a Tribe tem muitos fãs no Brasil e nunca tocou por aqui. Como você se prepara para uma apresentação num país em que sua banda é amada e você nunca tocou, nem sozinho, nem com o grupo?
Planejo cuidadosamente. (risos) Não sei, tento combinar coisas antigas com novas, músicas pra divertir a platéia. Tento não pensar muito a respeito, apenas deixo rolar.

(Por Filipe Luna)
(Fotos: Zé Gabriel)

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