No fundo da (Th)alma

Thalma de Freitas tem uma longa história em estúdios e palcos. Seus dois discos solo lançados em 30 anos de carreira, no entanto, não dão conta de apresentar quem ela é. Imersa agora em uma estética de jazz brasileiro (e preto!) com músicos de destaque da cena, ela apresenta essa nova fase no show “Serendipidades”. Confira a nossa entrevista com a artista!

Foto: José de Holanda

Ela tem um EP gravado com um trio de mestres da música instrumental brasileira, de 2004. Como atriz, teve contrato assinado com a Globo por 18 anos e estrelou novelas de grande sucesso como Xica da Silva (1996), Laços de Família (2000 / 2001) e O Clone (2001 / 2002). Cantou na Orquestra Imperial, banda que era sensação da cena musical do Rio de Janeiro no começo dos anos 2000. Em 2012, posou nua para a capa da revista Trip. Seu nome consta na ficha técnica de um dos álbuns mais influentes e cultuados do jazz deste milênio – The Epic, do saxofonista Kamasi Washington, de 2015. Quatro anos depois, foi indicada ao Grammy pelo álbum Sorte (2019), em um projeto do músico estadunidense John Finbury. Em 2022, foi apresentadora do programa eleitoral gratuito da campanha do então candidato à presidência, Luiz Inácio Lula da Silva.

Thalma de Freitas já fez muito. A cantora que sobe ao palco da Casa Natura musical nessa sexta 25 de julho, no entanto, diz que está em “um começo”. Com 51 anos de vida e 30 de carreira, ela está imersa na busca por uma linguagem de jazz brasileiro acompanhada por instrumentistas que se destacam na cena. Com apenas dois discos solo lançados em três décadas, ela não se orgulha do primeiro – Thalma, de 1996, produzido por Max de Castro. No Spotify, por exemplo, o álbum está praticamente escondido em um perfil da artista identificado somente com o primeiro nome de sua alcunha artística. Já Sorte é um trabalho em que ela aparece em destaque como cantora e compositora, mas que tem mais a cara de Finbury do que dela própria e com o qual ela não se identifica tanto assim.

As carreiras paralelas de atriz e cantora, uma mudança para os Estados Unidos (onde morou entre 2013 e 2023) e acordos mal feitos com empresários com quem trabalhou no começo de sua trajetória artística fizeram com que parte do seu brilho ficasse ofuscado e pouco acessível aos ouvintes. O EP Thalma de Freitas, o único trabalho em que ela realmente se reconhece por inteiro, traz apenas seis faixas e já tem mais de 20 anos. Em compensação, ela canta acompanhada por um trio dos sonhos da música brasileira: seu pai Laércio de Freitas (1941 – 2024) no piano, o baterista Wilson das Neves (1936 – 2017) e o baixista Bebeto Castilho (1939 – 2023). Ainda assim, parece muito pouco para alguém com tanto talento.

Thalma recebeu a Radiola Urbana em seu apartamento em São Paulo, compartilhou gravações recentes (inclusive uma joia em duo com o pianista Amaro Freitas, que será lançada como single) e conversou abertamente sobre os planos adiante e os percalços que ficaram para trás. Na Casa Natura, ela apresenta o show Serendipidades acompanhada de Fábio Leandro (piano), Vanessa Ferreira (baixo acústico), Vitor Cabral (bateria) e Maurício Pazz (violão). O repertório percorre por todas as fases de sua carreira, mas traz também composições inéditas.

Você apresenta Serendipidades como um projeto de jazz brasileiro. Por quê?
Eu entendi que sigo o legado do papai. Ele é uma sumidade no choro. Tem a Chiquinha Gonzaga, que estabeleceu o choro brasileiro; o Pixinguinha, que popularizou o choro; e o meu pai atualizou o gênero (sobretudo no álbum São Paulo no Balanço do Choro – Ao Nosso Amigo Esmê, de 1980). Ele é um grande nome da cena instrumental brasileira. O choro não é jazz, mas pertence ao mesmo ecossistema. Eu cresci cercado de uma galera, que depois eu fui entender que era a base da bossa nova: Johnny Alf, João Donato… O Donato morou um tempo nos Estados Unidos e, na volta, fez aula de harmonia com o meu pai na época do Quem é Quem (cultuado disco do Donato, de 1973). Tem uma cena brasileira que não é bem MPB, que se aproxima do jazz: Johnny Alf, Alaíde Costa… E tem uma cena instrumental brasileira que pode-se dizer que é jazz. E eu estou tocando com músicos que são dessa cena: o Vitor Cabral, o Fábio, a Vanessa… É uma cena em que, na questão técnica, não é um lugar para músico acompanhante – algo que tem muito na MPB. É uma linguagem bem específica, tem arranjos mais sofisticados, solos, muitas vezes precisa refazer a harmonia das músicas. A pegada da batida também é diferente. E como eu fui indicada ao Grammy na categoria jazz latino, entendi que você tem que ter, sim, a sua categoria muito clara para a mídia saber onde te encaixar e como falar de você. Entendi que eu precisava ser bem assertiva em dizer qual é o gênero que eu canto. Eu já fiz música que é reggae, música que é R&B… Eu compunha pensando na Orquestra Imperial, então tinha uma coisa meio vintage da música brasileira dos anos 50 e 60. O papai ouvia muita big band e conjunto vocal quando eu era criança. Como ele me formou musicalmente, peguei isso de mexer nas melodias. Quando eu canto com a banda, faço a melodia do jeito que ela é na primeira parte. Na repetição, eu monto outra melodia, interpreto o que eu já tinha feito. Isso vem do jazz. Meu jeito de cantar e meu treino são do jazz. Isso ficou mais claro para mim me vendo deslocada, nos Estados Unidos. O jazz me dá uma boa moldura e também me diferencia. Quando eu falo que sou cantora de jazz, entro para uma caixinha muito específica que os contratantes vão entender. Não é pista. Não é MPB para cantar junto.

Para esse projeto, você montou uma banda preta. Como tem sido tocar com esses músicos?
É um grande alívio. Quando eu conheci o Fábio com aqueles dreads na bunda, falei: “é isso!”. Amo os negros de cabelo longo, quero ter um treco. O Fábio e o Maurício fazem parte de uma cena com vários outros músicos que é preta. Eles estão focados nisso. Gosto de ter uma mina tocando baixo acústico também. É outra perspectiva, outro approach – não só de música, de tudo. É algo sobre, culturalmente, o que é ser preto no Brasil. Desde a linguagem aos papos que temos no meio do ensaio. Quais são as questões que a gente vai levantar? Quais são as referências que a gente tem? Aí eu também queria ter uma versão voz e violão do projeto e falei: “agora eu quero uma violonista mulher preta”. E, meu, de sete cordas só tem a Helô Ferreira. Eu fiquei passada. Conversei com a Vanessa sobre isso e ela levantou como é difícil uma mulher desenvolver as habilidades na cena porque os caras não te deixam tocar, não te chamam. Eles sempre chamam outros caras, então você não tem o ambiente necessário para desenvolver horas de voo. Mas eu achei a Helô. Graças a Deus, ela existe. A gente fez uma série de vídeos na internet e começou a pintar vários shows em duo. Eu falava: “mano, não quero fazer show de voz violão com cover de MPB, por mais lindo que seja”. E a gente estava tocando Lulu Santos, sabe? Tinha um repertório de rádio nesses vídeos. A gente montou o show, mas eu tenho preconceito. Não quero me ver no teatro fazendo isso, quero tocar as minhas músicas. Então eu incorporei a Helô no meu show, na minha banda, virou um quarteto. Ela não vai poder fazer esse show da Casa Natura porque já tinha outra gig. Então, nesse show, vai ser o Maurício. Ele toca a partir da metade do show pra frente.

Foto: José de Holanda

30 anos de carreira, 3 discos gravados. É pouco, não?
Eu tenho um monte de música – umas 50 com começo, meio e fim, melodia e letra. Eu não quis ser cantora, a princípio, eu quis ser atriz de musical. Gostava da ideia do teatro, de não estar cantando na noite, de ter autonomia. Comecei no teatro musical com 14, 15 anos. Eu modelava e fazia teatro. Entrei na companhia do Oswaldo Montenegro, fiz “Hair”, espetáculo com Cláudia Raia… Depois, o (diretor) Jorge Fernando (1955 – 2019) me levou para a televisão. No mesmo semestre, em 1996, eu assinei com a Globo e com a Sony Music. O disco que eu gravei pra Sony “flopou”. Na Globo, fiquei trabalhando por 18 anos. Isso me deu uma autonomia financeira para conduzir a carreira do jeito que eu queria. Mas esse disco da Sony me traumatizou. Eu não sabia gravar um disco. Foi lançado, não deu certo e rescindiram o meu contrato. O disco tá online, em outro perfil, e eu não mostro pra ninguém. Foi uma boa experiência, a primeira produção do Max de Castro. Mas eu não sabia dirigir, produzir, pensar em banda, arranjo. Não tive a ideia, por exemplo, de fazer música com o meu pai. Eu tinha um empresário que estava pouco se fodendo para mim. Eu estava bem perdida como cantora e com a carreira de atriz indo de vento em popa, eu era CLT na Globo. Era o melhor emprego do meio artístico e isso, admito, me mimou um pouco. Aí eu literalmente me acomodei entre trabalhar na Globo e cantar na Orquestra Imperial. Em 2004, fiz o EP com meu pai e a galera que me deixava confortável. Minha versão de “Cordeiro de Nanã” (composição de Mateus Aleluia e Dadinho, do repertório dos Tincoãs) foi parar na trilhar sonora da novela Senhora do Destino. O disco ficou lindo, mas não tinha uma equipe. Se o artista não tiver uma visão de mercado, é muito difícil que alguém tenha essa visão por você. E ninguém teve uma visão por mim. Então, eu travei mesmo. Fiquei traumatizada com a minha própria ignorância. Não entendia como ninguém fazia algo por minha carreira, sendo que eu já era uma artista estabelecida. Chegou uma época que os músicos não queriam trabalhar comigo se não tivesse um cachê cheio do nível da Maria Bethânia – porque, afinal, eu era famosa e “rica” para os padrões da classe artística. Mas eu não tinha empresário, nem produtor. E aí eu resolvi aprender a fazer isso recentemente. Eu estava com uma crise existencial, já com 40 anos, nos Estados Unidos. Só lá, aprendi o que precisava fazer para ter uma carreira de cantora. E só agora, 30 anos depois que comecei, consegui levantar o meu circo com a minha própria infraestrutura. A resposta curta para a sua pergunta é: ninguém me produziu antes e eu fiquei 20 anos batendo cabeça. Agora tenho que gestar a carreira de uma artista que já é famosa. É complicado. A operação é complexa e requer muitas pessoas botando fé em você. Eu nunca tive isso. Estou tendo agora. Em 2005, assinei com um empresário que me botou na geladeira. Era o auge da minha carreira: contratada da Globo – quando não havia muitas atrizes negras da minha geração na televisão – e com a Orquestra Imperial bombando. O cara assinou comigo e se negou a investir na minha carreira. Ele queria que eu saísse do meu emprego maravilhoso, do melhor emprego que um artista pode ter no Brasil, pra entrar na aventura dele. Ele ia me dar uma volta. Essa história é horrível. Mas eu nunca parei de trabalhar, isso de gravar pouco acontece porque o meu processo é muito disperso.

E, nesse processo, você tem um disco indicado ao Grammy…
Não é louco? Eu não fiz muitas coisas nos Estados Unidos, mas fiz muitas coisas de qualidade. Fui nomeada ao Grammy internacional. O John Finbury é advogado, compositor e pianista. Ele já tinha sido indicado ao Grammy com um outro projeto de música brasileira. Ele ficou encantado com isso e contratou um produtor para fazer mais um disco pensando no Grammy. A Bebel Gilberto me indicou para ele para ser letrista e cantora. Era para ser um disco meu. Mas eu não tinha ido para os Estados Unidos para gravar um disco de bossa nova. Nem a pau! Aí ele fez o projeto no nome dele.

Você também participou da gravação do The Epic, que já é considerado um dos discos mais influentes do jazz contemporâneo. Como foi essa experiência?
Logo que eu cheguei, a gente gravou, em 2013. Gravei grávida da Gaele (filha da cantora com o fotógrafo irlandês Brian Cross). O Brian é uma figura bem relacionada na cena da Califórnia e a produtora dele trabalhava com o Kamasi. Então eu gravei vocais em The Epic e Heaven and Earth (2018). Ele montou um coral para estes discos e me chamou. Era uma banda grande, que gravou vários discos e projetos de outros instrumentistas. O álbum do Kamasi foi o primeiro que eles finalizaram. Eles tocavam juntos há muitos anos, eram quase todos pupilos do Reggie Andrews, um professor que deu aula para o Kamasi, para o (baixista) Thundercat e muitos outros meninos da banda.

Durante a gravação, já dava pra sentir que seria um disco divisor de águas?
No disco, não. No show de lançamento em Los Angeles, ficou claro, foi muito potente. Muita gente já conhecia a banda porque eles tocavam regularmente na noite. A banda representava uma cena local. Sinto que foi um movimento cultural de LA. Ele não pensava que ia estourar, só queria realizar o sonho dele. Ele estava sendo absolutamente autêntico e frágil, até vulnerável – porque ele resolveu montar um negócio meio megalomaníaco, uma banda grande, com dois bateristas, dois baixistas. Era gigante. E as coisas foram acontecendo, chegamos a tocar no Hollywood Bowl. Achei muito simbólico estar junto nesse projeto. Eu sendo eu, vindo de onde eu vim, quem eu represento na cena brasileira…

Foto: José de Holanda

Por que “Serendipidades”?
Essa palavra é meu talismã. Ela referencia quando a oportunidade te encontra preparado. Sabe o erro que te leva além? Você tá no trabalho, não é à toa, não está de bobeira… Aí um equívoco te leva a dar um salto quântico e você descobre algo incrível porque a sorte ou o destino resolveram te mostrar. Isso acontece muito comigo. Eu trouxe essa palavra como um talismã para o show, para trazer minha carreira de volta ao Brasil, começar a minha carreira.

Começar a carreira? Você tem mesmo essa sentimento de começo?
Tenho, acredita? Já não sou a mesma pessoa que se mudou para os Estados Unidos, ela não existe mais. Estou fazendo um trabalho que nunca tinha feito antes: liderar uma banda, ter um time, alguém pra cuidar do financeiro, relações públicas, produtora de não sei o quê. Fico gestando talentos diariamente, dando direção, fazendo plano, sendo empresária. Montei uma estrutura maior para uma artista que não lança disco há 20 anos. Então é uma nova fase. Achei minha voz e minhas composições, sou diretora da minha banda. Sei o que quero, antes eu não sabia. É engraçado porque levou uma vida inteira.

É curioso porque tem uma semelhança com a carreira do seu pai, né? O Laércio gravou muito acompanhando outros artistas desde os anos 60, mas lançou só dois discos solo até 1980…
Sim, só dois. Estou quebrando um karma geracional. Papai sabia menos do que eu sobre gestão de carreira. Eu sabia arranjar um emprego e me sustentar como artista. Meu pai era o talento e a minha mãe (a produtora Piki de Freitas), o executivo. Ele também não produziu nenhum dos discos dele. Eu nunca ouvi falar na minha casa sobre como você bola um álbum. Ele não fazia isso, ele escrevia arranjo. Lembro dele com partituras gigantes, escrevendo para orquestra na mão. Ele tocava piano na noite, acompanhou outros artistas por um tempo. Mas ele não tinha esse pensamento de produzir discos. Lembro que tretei muito com ele nos meus 20 anos porque eles estavam sempre sem grana. Eu aprendi no teatro que você pode produzir. Eu falava: “por que você não bola um projeto?”. Ele não pensava nessas coisas. No final, eu também não soube fazer. Eu conseguia pensar no teatro, que me formou e me ensinou a trabalhar. Eu sabia subir no palco, estar pronta, interpretar… Agora, as obras do meu pai estão sendo digitalizadas e a gente vai remontar a banda com os parceiros dele para tocar os arranjos que ele escreveu. Ele tem um monte de música inédita, igual a mim.

(Por Ramiro Zwetsch)

Thalma de Freitas – Serendipidades
Casa Natura – São Paulo
Sexta, 25 de julho, às 21h
www.casanaturamusical.com.br

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