Jazz no altar
A capa já diz a que veio: 16 músicos no um altar de uma igreja, empunhando seus instrumentos. Bateria, baixos, sopros esculpem peças que são um monumento do spiritual jazz guiado por Horace Tapscott, que comanda a oração sentado ao piano. Gravado em uma igreja, durante apresentações ao vivo, “Live in the I.U.C.C” é um dos três discos lançados por uma das mais arrasadoras orquestras do jazz moderno.
No ano do centenário de Sun Ra, é bom lembrar que o músico cósmico não foi o único a liderar uma “Arkestra”. Sob sua influência, diversos grupos se formaram por todos os EUA nos anos 60 e 70 e um dos mais impressionantes era a Pan-Afrikan Peoples Arkestra — que reunia músicos que viviam na costa oeste do território n0rte-americano, mais precisamente em Los Angeles. A exemplo da AACM de Chicago, a orquestra tinha uma fundação de músicos por trás, a U.G.M.A.A (Union Of God’s Musicians & Artists Ascension).
Seu líder, Horace Tapscott, havia nascido no Texas, e se mudado para Los Angeles aos nove anos de idade. Tocava trombone e piano e, na adolescência, acompanhou Don Cherry e Billy Higgins. Após servir o exército, tocou trombone na banda de Lionel Hampton, mas saiu e focou seu talento no piano. Antes de partir para a carreira solo, ainda acompanhou o saxofonista Sonny Criss. Já nos anos 1960, Tapscott fundou sua Arkestra, agregou os músicos em torno da U.G.M.A.A. (da qual também era o criador) e revelou nomes importantes: Arthur Blythe, David Murray, Sabir Mateen, Roberto Miranda, Jesse Sharps, entre outros que passaram por sua, mais do que banda, comunidade.
Os registros da Pan-Afrikan Peoples Arkestra se limitam a três discos: “Flight 17”, “The Call” e o já citado “Live in the I.U.C.C.”. Todos foram gravados entre 1977 e 1979 e lançados pelo selo independente Nimbus, do próprio Tapscott, que também registrava os discos dos outros músicos envolvidos com a U.G.M.A.A..
Ao contrario da Arkestra de Sun Ra, a de Tapscott faz um som mais intelectualizado, complexo e de difícil assimilação — ainda que tenha o forte ingrediente comunitário em sua base ideológica. Suas músicas tem o fator vanguardista, mas seu jazz é mais progressivo e sofisticado. Muitas músicas passam dos 15 minutos e se aproximam dos 30 de duração.
“Fligh 17”, que abre o disco de mesmo nome, lançado em 1978, mostra bem isso. Começa silenciosa, vai ganhando corpo até se transformar em uma cacofonia — uma confusão planejada — em meio a solos de alguns dos mais de 15 músicos que participam de sua gravação, para terminar suave com o voo do solo de flauta de Adele Sebastian e já emendar com a curtinha “Breeze”.
Em “The Call” (também de 1978), a Arkestra trouxe novas possibilidades ao acrescentar vocal na faixa “Quagmire Manor At Five A.M.” e explorar sonoridades orientais e ainda mais espirituais nas outras 3 longas músicas do disco. A própria capa e o nome já apontam para esse caminho: uma ilustração de Horace aparece em primeiro plano, como se estivesse conduzindo, sobreposto ao desenho da I.U.C.C., igreja que agregava a comunidade representada pela U.G.M.A.A..
E foi justamente no palco — ou melhor, altar — da I.U.C.C. (Imannuel United Church of Christ) que o som da Pan African atingiu aquilo que os religiosos chamam de milagre. Gravado ao vivo e editado de apresentações que ocorreram no local num período de poucos meses, o disco duplo “Live at I.U.C.C.” (de 1979) traz 7 registros da orquestra de Tapscott em seu auge.
Duas das músicas passam dos 20 minutos. “Macrame” (que abre o disco 1) e “Village Dance” (que ocupa o lado 1 inteiro do disco 2) têm uma sonoridade que vai crescendo aos poucos, com uma progressão hipnotizante e muita influência oriental. “Desert Fairy Princess” é pontuada pela flauta, enquanto um arranjo delicado da orquestra dá voltas em torno do solo. “Nossessprahs” é uma das composições mais free do disco, que fica completo com “Future Sally’s Time” (composta por Arthur Blythe), “L.T.T.” ( a única do próprio Horace) e “Lift Every Voice”, com menos de 2 minutos, que encerra a oração com um coral.
São três discos que revelam bem a faceta do jazz dos anos 70, quando o melhor estava sendo feito em pequenos selos, bem longe do mainstream das gravadoras que tinham o domínio do mercado durante a explosão do gênero nas décadas de 50 e 60. A Arkestra de Tapscott converte qualquer infiel que acredita que o jazz morreu junto com John Coltrane ou quando Miles Davis cedeu ao fusion.
(Por Alê Duarte)
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