Jazz contra o racismo
Embora boa parte do público dos festivais de jazz no Brasil seja a elite branca interessada em uma vertente mais comportada para acompanhar o uísque, a história do gênero mostra que a revolta contra o racismo é uma tradição desde os anos 30 – não por acaso, sua raiz está intimamente relacionada aos cantos dos escravos. A playlist a seguir reúne 10 faixas que simbolizam essa luta em forma de música, em que a estética sangue no olho talvez não combine com aquele momento de relax sem remorsos na sua confortável poltrona. É trilha sonora para o levante popular.
1 – “Strange Fruit” – Billie Holiday, 1939
Essa canção é um símbolo na luta dos direitos civis nos Estados Unidos. A estranha fruta a que a letra se refere é o corpo do negro pendurado no galho de uma árvore, imagem comum no sul país nos anos 30. Escrita pelo judeu Abel Meeropol, a música ganhou um sentido ainda maior na interpretação sempre apaixonada de Billie Holiday. Mais tarde, Nina Simone gravaria uma versão igualmente arrebatadora. Em 2012, a editora Cosac Naify lançou o livro “Strange Fruit – Billie Holiday e a Biografia de uma Canção”, que aborda todo contexto de concepção da obra e da primeira vez que a cantora a interpretou ao vivo no Café Society, em Nova York.
2 – “Come Sunday” – Duke Ellington & Mahalia Jackson, 1958
“Come Sunday” faz parte da peça “Black, Brown and Beige”, que Duke Ellington compôs para apresentar no Carnegie Hall, em 1942. Na ocasião, ele introduziu a obra como “um paralelo à história do negro na América” e a dedicou aos 700 negros que vieram do Haiti para a Guerra da Independência dos Estados Unidos, entre 1775 e 1783. Essa versão foi gravada em 1958, com uma breve e lírica introdução ao piano e a voz profunda de Mahalia Jackson sem acompanhamento por mais de cinco minutos. A letra diz: “Deus do amor, por favor, olhe pra baixo e veja meu povo”.
3 – “Fables of Faubus” – Charles Mingus, 1959
Essa é considerada uma das composições mais engajadas do baixista e compositor Charles Mingus e é um recado direto ao então governador do Arkansas, Orval E. Faubus – que, em 1957, enviou a guarda nacional para impedir que 9 estudantes negros se matriculassem em uma escola do estado norte-americano. A música trazia versos como “não mais Ku Klux Klan” e “Governador Faubus, porque ele é tão doente e ridículo”. A gravadora Columbia, no entanto, censurou a letra e a primeira versão, registrada no clássico “Mingus Ah Um” (de 1959), é instrumental. Uma gravação cantada foi lançada um ano depois no álbum “Charles Mingus Presents Charles Mingus”, pela gravadora Candid.
4 – “Triptych: Prayer / Protest / Preach” – Abbey Lincon e Max Roach, 1960
Aqui, a dor e a raiva se traduzem em forma de música com rara perfeição. A composição faz parte do álbum “We Insist – Freedon Now Suite”, uma obra inteira (desde a capa, que ilustra esse post) dedicada ao protesto contra o racismo, ao movimento pelos direitos civis e à liberdade da África do Sul. Baseada unicamente em um diálogo entre a bateria de Max Roach e a voz de Abbey Lincoln (que eram casados), sem letra, a gravação se divide em três partes que simbolizam a oração, o protesto e a paz. Na segunda, a dupla atinge um êxtase de revolta com berros e golpes com as baquetas que são como uma sequência de murros de Muhammad Ali na boca do estômago do ouvinte.
5 – “African Lady” – Randy Weston, 1961
“Uhuru Africa” é um dos muitos discos de jazz do período que estabelecem uma conexão com a África como berço da civilização e reivindicavam a independência dos países do continente. O álbum trazia poemas e encarte assinados pelo poeta sul-africano Langston Hughes, exilado de seu país desde 1964. Cópias do LP foram apreendidas em Johannesburgo e na Cidade do Cabo. “African Lady” é um épico de mais de dez minutos, com dinâmicas surpreendentes e que levam o arranjo para diferentes direções durante a música. O pianista Randy Weston morreu em 2018, aos 92 anos.
6 – “Alabama” – John Coltrane, 1963
John Coltrane compôs esse melancólico tema inspirado no ataque a bomba em uma igreja batista que tirou a vida de quatro crianças negras em 1963, na cidade Birmingham, no estado norte-americano do Alabama. O atentado foi de autoria da Ku Klux Klan, mesma organização que declarou recentemente identificação com um certo candidato à presidência do Brasil.
7 – “Song For Che” – Charlie Haden, 1970
Essa composição do baixista Charlie Haden foi lançada no álbum “Liberation Music Orchestra”, que trazia arranjos da pianista Carla Bley e versões para antigas músicas folclóricas espanholas – que ganharam um novo significado durante a guerra civil do país, entre 1936 e 1939. Dedicada a Che Guevara, Haden apresentou essa canção em Lisboa com a banda de Ornette Coleman em 1971 e a dedicou aos revolucionários anticolonialistas das colônias portuguesas de Moçambique, Angola e Guiné. No dia seguinte, foi detido e interrogado no aeroporto da cidade. De volta aos EUA, teve de se explicar também ao FBI.
8 – “Nation Time” – Joe McPhee, 1971
Que porrada! Gravado ao vivo no centro urbano para estudantes negros no Vassar College, em Nova York, o álbum “Nation Time” do saxofonista Joe McPhee reverbera a mensagem dos panteras negras com um jazz extremamente inventivo e com uma certa fúria punk. É possível estabelecer alguma coincidência estética com o seminal “Bitches Brew”, que Miles Davis lançaria no ano seguinte.
9 – “The Loud Minority” – Frank Foster, 1972
As minorias tem de ser barulhentas! Sob a efervescência da guerra do Vietnã, do escândalo de Watergate no governo Nixon e o assassinato de Martin Luther King, “The Loud Minority” é inspiração e fúria em estado bruto. A banda liderada pelo saxofonista Frank Froster traz outros prodígios, como o baterista Elvin Jones e o percussionista brasileiro Airto Moreira. A faixa começa com a cantora Dee Dee Bridgewater em um discurso inflamado que clama por liberdade e é seguido por uma quebradeira de arrebatar.
10 – “Cry For My People” – Archie Shepp, 1972
Nessa composição lançada em disco homônimo, Archie Shepp combina vocais de um coral gospel com o sentido de urgência que seu saxofone frequentemente transmite e soa como uma prece em forma de spiritual jazz.