Jazz com sotaque etíope

Março de 2011. Mulatu Astatke desembarca no Brasil para duas apresentações (memoráveis!) no Sesc Vila Mariana, com ingressos esgotados em menos de duas horas. O gênio do jazz etíope atendeu o telefone na recepção do hotel que estava hospedado em Londres — nos poucos minutos entre o checkout e a chegada do táxi que o levaria para o aeroporto, onde pegaria o voo rumo a São Paulo — para conceder a seguinte entrevista (publicada originalmente no Caderno 2 + Música do jornal O Estado de São Paulo). Leia!

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Bill Murray está largado no sofá com o mesmo olhar perdido de “Encontros e Desencontros” – Sofia Coppola, 2003. O personagem é Don, de “Flores Partidas” – Jim Jarmush, 2005. Uma carta anônima o atormenta: ele teria um filho, já adolescente, que quer conhecê-lo. Um vizinho tenta apaziguar as inquietações do amigo e coloca um CD: “música etíope, faz bem ao coração”. A faixa que toca é “Yèkèrmo Sèw”, de Mulatu Astatke, e as palavras do personagem interpretado por Jeffrey Wright definem com simplicidade e perfeição o impacto do primeiro contato com a obra do maestro, arranjador, instrumentista e compositor. Mulatu é seguramente o músico mais importante da Etiópia e um dos mais cultuados de todo continente africano – além de um jazzista com um sotaque de causar ao mesmo tempo fascinação e estranheza aos ouvidos ocidentais. Sopros serpenteiam em labirintos de melodias e improvisos, o vibrafone projeta paisagens sonoras do Oriente Médio e a percussão balança num calor caribenho: tudo meticulosamente entrelaçado, como num bordado persa.

Essa combinação foi batizada de ethio-jazz, num raríssimo caso de um gênero musical associado quase que totalmente a um único artista. O álbum que simboliza o surgimento dessa estética é “Mulatu of Ethiopia”, de 1972. Até chegar lá, Mulatu Astake já tinha alcançado alguns feitos. Nos anos 60, se tornou o primeiro africano a ingressar na prestigiada Berkelee Colege of Music, em Boston. Estudou também em Londres e Nova York – onde gravou, em 1966, os discos “Afro-Latin Soul” volumes 1 e 2. Em 1973, o músico já era uma referência: influenciou e fez arranjos para outros artistas da Etiópia e tocou com Duke Ellington, durante turnê do músico norte-americano no Egito.

Os anos 80, no entanto, foram ruins pra Etiópia e para Mulatu.  Enquanto guerras e fome devastavam o país, a obra do músico caía vertiginosamente em esquecimento para o resto do mundo.  A redescoberta começou no final dos anos 90, quando o lançamento da série de coletâneas “Ethiopiques” – sucesso entre os DJs e ouvintes de prestígio, como o cineasta Jim Jarmush – desencadeou um processo de culto tardio: os álbuns foram relançados, “Flores Partidas” amplificou o interesse e o maestro reapareceu pra fazer shows e gravar. Em 2010, ele lançou o disco “Mulatu Steps Ahead”, mais de 30 anos depois sem um trabalho solo. E em 2009 registrou uma parceria com a banda inglesa The Heliocentrics no disco “Inspiration Information”.  Ambos os trabalhos saíram pela gravadora Strut Records e esta onda de redescoberta atravessou todos os mares até desaguar influências no Brasil.

“Conheci Mulatu quando ouvi a trilha sonora do filme de Jim Jarmush e fiquei ao mesmo tempo encantada e chocada por ter demorado tanto para conhecer essa maravilha – que soa, de alguma maneira, familiar com a nossa música: os afro-sambas, Moacir Santos”, diz a cantora Céu, que revela ter absorvido influências do maestro na faixa “Bubuia”, do seu disco“Vagarosa” (2009). “Gostei de cara, pelos arranjos pra lá de bem feitos, que quebraram toda a ideia que eu tinha de música etíope: a dissonância constante, o baixo bem marcado, os metais certeiros e a grande influência da música latina”, acrescenta Jorge Du Peixe, vocalista da Nação Zumbi. Outros, tem o privilégio de conhecer a obra desde os anos 70. “Escuto muita coisa ‘estranha’ desde quando meu pai foi à Alemanha Oriental, antes da queda do muro, e trouxe muita coisa de lá. Adoro o som do Mulatu: é jazz, pop, dançante. As melodias são quase sempre modais, em escalas orientais. Isso traz um ar sempre étnico, às vezes meio árabe, às vezes meio búlgaro”, explica André Abujamra.

É música para alma. Faz bem ao coração.

Como você criou o ethio-jazz?
Foi há mais ou menos 40, 42 anos atrás. Eu estava vivendo nos Estados Unidos, entre Nova Iorque e Boston e Nova Iorque. Eu tinha o meu grupo e estávamos experimentando, pegávamos a música etíope e fazíamos a fusão com o jazz. Se você toca música etíope, ela é sempre baseada em um conjunto de escalas de cinco notas, o ethio-jazz é cinco contra as doze da escala ocidental.  Para manter a atmosfera do som, eu sempre tenho que tomar cuidado para manter as cinco notas dominando, lá em cima.

Sua música é muito cinematográfica, projeta imagens na mente do ouvinte. Como você consegue isso?
É como eu estava dizendo, são as fusões, é a maneira como você comanda os dois sons, é também o jeito que você compõe as músicas. Você sabe, o homem pode ver os seus sentimentos e a música espalha isso.

Como era tocar jazz na Etiópia nos anos 60?
Havia muitas bandas, big bands e orquestras, tinha tudo isso, mas eu sempre quis ser diferente de tudo isso. Eu conheci o jazz e quis tocar um jazz etíope e a abordagem era diferente naquela época, era mais difícil. Isso foi há mais de 40 anos, hoje todos tocam jazz, a América toca seu jazz, a Suécia toca seu jazz, a Alemanha toca seu jazz e tem sido tocado em qualquer lugar.

Sua composição “Girl From Addis Ababa” por acaso tem esse nome como referência à “Garota de Ipanema”?
Não, eu estava pensando apenas em como as garotas da Etiópia, você sabe, especialmente em mulheres como Alice, que viajam sozinhas. Compus para as garotas da Etiópia.

Sobre o disco que gravou com os Heliocentrics. Você gostou de tocar com músicos jovens?
Sim, foi realmente muito divertido. Eles são mais eletrônicos, mas o principal é que os músicos adoram música etíope e jazz. Passamos uma ótima temporada em Paris. Foi muito bom.

Como foi trabalhar com Duke Ellington?
Duke era um cara que eu sempre vou admirar na minha vida, como todas as big bands, como Quincy Jones. Existem muitos experimentos e análises sobre a música dele. Realmente foi como mágica ter a chance de tocar uma composição minha, “Dewell”, com arranjo baseado nas músicas de igreja. Eram bons tempos, muito bonitos.

É verdade que você gravou com Alice Coltrane?
É claro, nós fizemos algumas músicas quando ela foi para a Etiópia. Eu tive a chance de conhecê-la e de tocar com ela. Gravamos em uma estação de rádio e foi uma outra grande oportunidade pra mim, uma excelente música.

E onde está esse material?
Bem, foi gravado em uma estação de rádio. Provavelmente ficou guardado lá.

Há alguma chance de achar essa gravação?
Eu estou trabalhando nisso mas viajo muito tocando, estou em todos os lugares e fico pouco em casa. Mas preciso insistir para o pessoal da rádio procurar isso.

Sua música produzida hoje como no álbum “Mulatu Steps Ahead”, também pode ser chamada de jazz etíope ou é um estilo novo?
Bem, existem composições com um novo estilo dentro da música jazz. Os outros trabalho que fiz também tinham mais de um pensamento nas composições, mas realmente as coisas tinham começo e fim, já em “Steps Ahead”, existem músicas com diferentes humores e andamentos. É apenas uma abordagem diferente do jazz.

Qual é a importância do filme “Broken Flowers” e da série Ethiopiques para as pessoas descobrirem a sua música?
Jim Jarmush é um diretor que admiro e que realmente pensou na minha música. Depois do filme, eu tive uma experiência diferente em Nova Iorque, jornalistas do New York Times e do Los Angeles Times fizeram resenhas muito boas sobre os shows, sobre o ethio-jazz e sobre o filme.

Como você cria suas músicas?
Minhas músicas? Elas somente aparecem, talvez no meio de uma viagem ou apenas sentado, você sabe, pensando… As coisas surgem na minha mente. Eu ando bastante e quando eu ando as coisas vêm. É assim que funciona.

 (Por Ramiro Zwetsch)

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