Craque Donato
No quem é quem da música brasileira, João Donato é um dos craques: compositor além, multiplicador de harmonias com poucas notas e pianista de mão cheia. Quase oitentão (ele comemora a data redonda em agosto), o músico celebra os 40 anos de um disco que apresenta um outro atributo seu: o canto. “Quem é Quem”, de 1973, traz joias como “Cala a Boca, Menino”, “A Rã”, “Amazonas” e “Terremoto” e experimenta arranjos que acolham seu timbre e estilo vocais fascinantemente imperfeitos. Ele apresenta este repertório nos dias 27 e 28 de fevereiro, no Sesc Pinheiros, acompanhado por um time de jovens músicos (muitos integrantes do Bixiga 70) e os convidados especiais Mariana Aydar, Tulipa Ruiz e Marcos Valle — produtor original do disco. Trata-se de um show que não se pode perder e é possível que os ingressos já tenham se esgotado antes da publicação deste post. Para quem conseguir ir ou não, é indispensável também a leitura da carta que Donato escreveu para o amigo João Gilberto em que descreve seu entusiasmo com “Quem é Quem” e esmiúça a participação de alguns gigantes da música brasileira no trabalho (Eumir Deodato, Marcos Valle, Nana Caymmi, Dom Um Romão, Naná Vasconcellos…). A relíquia foi publicada pelo diretor do show, Ronaldo Evangelista, em seu blog. Olha que coisa linda (transcrição abaixo da imagem):
Para o Jonas
“QUEM É QUEM” … é João DONATO
Tudo começou em Nova York ’72 quando encontrei com meus amigos Dom Um Romão (baterista) e Eumir Deodato (arranjador) – quando gravamos em 6 horas, 6 números instrumentais – gravação esta que atualmente está nas paradas de sucessos lá nos Estados Unidos, e se chama DONATO/DEODATO.
Chegando ao Brasil, na época do natal do ano passado, em um encontro casual com Agostinho dos Santos (na casa do Marcos Valle), papo vai – papo vem, Marcos resolveu me convidar para fazer um disco aqui no Brasil, que vem a ser justamente QUEM É QUEM… é JOÃO DONATO.
Dos 6 temas que gravamos nos E.E.U.U. DONATO/DEODATO, Agostinho sugeriu que acrescentássemos letras, que mais tarde ele mesmo iria gravar.
Começamos então a trabalhar todos os dias; eu, Marcos e Nana Caymmi – na seleção do material, modo de apresentação, letras para as músicas (quando então tive o prazer de conhecer meus parceiros Paulo Cesar Pinheiro, Geraldo Carneiro, João Carlos Pádua e até meu irmão Lysias Ênio), músicos para as gravações (quando tive a satisfação de rever alguns dos meus músicos favoritos e também de conhecer “novas aquisições”, como o guitarrista Hélio Delmiro, o baterista Lula, o percussionista Nana, o músico Novelli) – trabalho este que tendo começado em janeiro, só foi terminado em agosto deste ano.
Como se vê, é meu melhor trabalho em discos até o momento, tendo-se em conta o tempo o tempo que demorou, o que demonstra o máximo cuidado com que tudo aconteceu, e o resultado é um disco que sinceramente eu acho ADORÁVEL.
Técnica (Nivaldo e Toninho) parabéns; trabalho sério, com muito amor à coisas sérias (muito difícil acontecer). Love story. Enfim, vamos morrer todos abraçados, gritando ÔBA – como diz o produtor do meu próximo disco também para a ODEON, dr. Jorge Bernardo [Heimmachenflam] (o popular J. Canseira). Tempo estável, céu azul celeste, fim de linha, você é adorável. Você é indispensável… e isso acostuma.
Muito obrigado aos maestros Gaia, Dori Caymmi, Ian Guest e Tio (Laércio de Freitas), que fizeram as orquestrações exatamente como eu pedi nos meus arranjos.
Observem as 12 flautas nos números A RÃ e TERREMOTO (qualquer semelhança com uma feira na esquina de casa é simplesmente intencional) e é naturalmente uma coincidência eu estar compondo esta música momentos antes do último terremoto que abalou a cidade de Los Angeles. Rezei forte, e a reza está no disco. Até a voz da Evinha dizendo “estou com medo” está no disco.
Na música AMAZONAS, notem entre outras raridades, o piccolo-trumpete do FORMIGA, o harmonica (ou gaita de boca) do MAURICIO EINHORN – que também colaborou na gravação dos States – e também uma OCARINA, tentando fotografar em som a região da minha terra – RIO BRANCO, ACRE.
Impressionante a certeza, afinação e confiança na voz de Nana Caymmi na faixa MENTIRAS. Também “fora de série” estão os efeitos de percussão e as vozes de NOVELLI e NANÁ e NANA nas faixas 1) CALA BOCA MENINO, 2) NÃNA DAS ÁGUAS e 3) ME DEIXA (sendo que nesta, a censura não nos deixou cantar a letra de Geraldinho Carneiro).
No CALA BOCA MENINO, ouvem-se os meus metais e no ME DEIXA e NÃNA DAS ÁGUAS ouvem-se os 4 saxofones altos do maestro Gaia.
A novidade que eu introduzi no “QUEM É QUEM” é realmente minha voz. Eu sou João Donato – amigo do piano. Ele gosta mais de mim do que eu dele, porque a qualquer hora que eu chego, ele está à minha espera (sem reclamar a demora). Não digo nada – acaricio e ele fala. Com passes longos – rápidos e rasteiros. E é cada gol lindo, que nem é bom falar. Porque eu te amo. Te amo. Love story.
Na faixa CHOROU… CHOROU, é simplesmente sensacional o joguinho uníssono meu e do Helinho no solo. Entramos os dois dentro do gol, com bola e tudo, que realmente eu nem sei se o gol foi meu ou dele.
ATÉ QUEM SABE e AHIÊ são músicas românticas, com um ótimo trabalho de cordas do meu amigo Dori Caymmi – cobra bem criada, cobra de duas cabeças. E as letras se explicam por si mesmas.
CADÊ JODEL? foi escrita e dedicada à minha filha (hoje com 10 anos de idade) com letra do meu amigo e produtor Marcos Valle. Utilizei mais uma vez “os metais” sendo que desta vez “com surdinas” do princípio ao fim, para evitar o “barulho” do qual já gostei muito quando eu era garoto e comprava tudo que era disco de jazz – o que muito me influenciou naquela época – para contribuir com muitas idéias para a criação da tão falada e agora internacional [BOSSA NOVA].
FIM DE SONHO é realmente uma música para você adormecer ouvindo. Eu já fiz isso. É ótimo. A orquestração é “um banho”. As anotações são do meu amigo Ian Guest, natural da Hungria e radicado no Brasil há 8 anos mais ou menos – o que demonstra a naturalidade com que ele trabalha com os nossos temas.
Enfim, “QUEM É QUEM” é lindo.
Bom proveito e feliz fim de sonhos lindos – céu azul celeste – tempo estável – temperatura aqui na Glória 19°.
P.S. – Ah! ia me esquecendo. O meu melhor “muito obrigado” a Milton Miranda, à nossa querida rainha Elizabeth II e rei Phillip pela oportunidade de fazer uma coisa realmente linda.
Até um dia.
Sempre seu,
João Donato
Rio 13 de setembro de 1973
João Donato – Quem é Quem
Sesc Pinheiros, 27 e 28 fevereiro
Participações: Tulipa Ruiz (voz), Mariana Aydar (voz), Marcos Valle (voz, piano elétrico Fender Rhodes e minimoog)
Banda: João Donato (voz, piano e piano elétrico Fender Rhodes), Marcelo Dworecki (baixo elétrico), Guilherme Kastrup (percussão), Décio 7 (bateria), Mauricio Fleury (guitarra), Anderson Quevedo (sax tenor, sax barítono e flauta), Richard Fermino (trombone, clarone e flauta), Cuca Ferreira (sax barítono, flauta e flautim)