Attica Blues, 50
A fotografia de Chuck Stewart registra Archie Shepp sentado ao piano, cigarro na boca, o saxofone deitado sobre a tampa do outro instrumento ao lado de duas garrafas de cerveja vazias. Em um quadro sobre seu ombro direito, está a clássica imagem dos atletas estadunidenses e negros Tommie Smith e John Carlos com os punhos erguidos e cerrados no pódio, durante as Olimpíadas de 1968, na Cidade do México. O título do álbum é “Attica Blues”, lançado em 1972. O trabalho reverbera o horror diante ao massacre no presídio Attica Correctional Facility, no estado de Nova Iorque, em setembro de 1971. No dia 13 daquele mês, sob a ordem do governador Nelson Rockfeller, a polícia invadiu a prisão com o pretexto de encerrar uma rebelião que já durava 4 dias. 39 pessoas, entre detentos e reféns, morreram na ocasião. A maioria dos rebeldes (e mortos) era de negros. A maioria de soldados era de brancos.
Já havia alguns anos que Shepp se posicionava por intermédio de sua música contra o racismo nos Estados Unidos, em sintonia com o ativismo negro em ebulição nas décadas de 60 e 70. Em 1965, ele lançou “Malcom, Malcom, Semper Malcom”, no álbum “Fire Music”. As gravações aconteceram nos dias 16 de fevereiro e 9 de março daquele ano. Entre uma data e outra, no dia 21 de fevereiro, aconteceu o assassinato de Malcom X. O saxofonista, então, escreveu um poema em homenagem ao líder negro – que ele mesmo recita na introdução da música, um lamento perturbado e marcado pelas notas que escorrem como lágrimas da boca de seu instrumental de metal.
“Me lembro daquele dia da mesma forma que me lembro do dia que John F. Kennedy foi assassinado. É um desses momentos históricos que te deixam permanentemente chocado, ainda hoje posso falar do meu sentimento naquele dia trágico, espantoso. Escrevi aquele poema e o dediquei ao irmão Malcom. Ele foi muito importante, um libertário, um homem que falou diretamente ao povo negro para se unir contra a opressão”, disse Shepp à Radiola Urbana em 2018, quando veio a São Paulo como atração do festival Sesc Jazz.
Em 1971, antes do massacre de Attica, o músico reivindicava mudança no LP “Things Have Got to Change”. A faixa-título é um colosso de mais de 15 minutos em um transe de fúria e suingue jazzístico – em que a letra se sustenta exclusivamente na repetição do mantra: as coisas têm de mudar. Há ainda um protesto contra a concentração de renda em “Money Blues” (que se estende pelo lado A inteiro do disco) e uma homenagem a Martin Luther King (“Dr. King, The Peaceful Warrior”).
“Attica Blues”, portanto, surge em um momento da carreira em que o artista já apontava seu saxofone para a direção do engajamento. É sua obra mais radical nesse sentido. A primeira e homônima música é uma surpresa. Até então, ele era conhecido como um dos arquitetos do free jazz, um saxofonista tão influenciado por John Coltrane quanto influenciador dos caminhos que o parceiro trilhou a partir do contato com o acento mais indignado que se percebia no sopro de Shepp. “John foi um grande irmão, ele abriu as portas. Ele fez coisas que ninguém fez antes. A minha história é o que veio antes de mim – ou seja, John Coltrane é a minha história. Ele mudou o jeito de tocar saxofone, criando novas técnicas e novos sons”, nos disse Shepp, em 2018.
A faixa-título de “Attica Blues” é introduzida por uma guitarra sob efeito do pedal wah-wah e uma linha de baixo balançada. Quando os vocais entram, o ouvinte entende: estamos no território da soul music, que no ano anterior havia engatado definitivamente no discurso de protesto com o estrondo causado pelo disco “What’s Going On”, de Marvin Gaye, que amplificava para um público maior a mensagem de revolta que já pairava em discos anteriores de artistas como Curtis Mayfield e Gil Scott-Heron. Quem canta é o experiente cantor gospel Carl Hall, em um falsete andrógino que só se revela ser a voz de um homem quando se verifica a ficha técnica do álbum. “Tenho a sensação de que algo não vai bem / e estou preocupado com a alma humana”, ele brada, em um inconformismo que tanto convoca ao levante como convida os quadris ao sacode. Está dado o recado. A música 1 do lado A nos deixa claro: esse é um álbum de luta.
Há pelo menos mais duas referências diretas aos eventos do presídio de Attica. “Blues for George Jackson” reverencia o jovem negro que foi morto em 21 de agosto de 1971, durante uma tentativa de fuga. Ele foi condenado em 1961 por assalto a mão armada. Na prisão, se tornou integrante dos Panteras Negras e publicou série de textos para o jornal do partido. Ele é autor do livro “Soledad Brothers: The Prision Letters of George Jackson” (misto de autobiografia e manifesto) e também teve uma série de cartas compiladas em outras duas publicações. A ativista Angela Davis fez campanha pela redução de sua pena e foi acusada de fornecer armas para uma ação planejada por Jonathan Jackson, irmão de George, em agosto de 1970. A homenagem de Shepp é um tema instrumental, com diálogo intenso entre as dinâmicas de seu tenor e a estridência do alto de Marion Brown.
Já “Ballad for a Child” traz um poema do baterista Beaver Harris recitado por William Kustler, advogado que defendeu vários dos prisioneiros julgados no processo decorrente do massacre de Attica. Sua simples presença no álbum denota um posicionamento político escancaradamente a favor dos rebeldes, que não só protestavam contra o assassinato de George Jackson como reivindicavam melhores condições à comunidade carcerária. “Algumas pessoas pensam que estão em seus direitos / quando no comando, tiram a vida de um homem negro”, dizem os versos do poema. O timbre de Carl Marat reaparece bem mais suave aqui para injetar uma dose de doçura ao discurso de indignação: “mas o que mundo realmente precisa / é do sorriso de um bebê”.
O repertório traz ainda duas referências aos totens do jazz de fases anteriores: o saxofonista Charlie Parker (“Invocation to Mr. Parker”) e Louis Armstrong (“Good Bye Sweet Pops”), que havia morrido em 1970. Aparentemente desconectadas ao tema do álbum, prestam reverência aos que vieram antes e desbravaram um terreno fértil para a música negra dos Estados Unidos: “a minha história é o que veio antes de mim”.
Fúria, melancolia, ancestralidade, engajamento e delicadeza se entrelaçam na obra de Archie Shepp, um monumento da música de protesto. A discografia de soul e jazz estadunidenses dos anos 60 e 70 fincaram infinitas bandeiras no território da arte contra o racismo, a violência policial, a política genocida do presidente Richard Nixon e os horrores da Guerra do Vietnã. “Attica Blues” é mais uma entre tantas. Este álbum completa 50 anos em 2022. Salve!
(Por Ramiro Zwetsch)