A ira criativa

“Sorrow, Tears and Blood” (1977), um dos clássicos de Fela Kuti, acaba de ganhar uma edição brasileira em vinil e no capricho — com pôster exclusivo e uma versão estendida da faixa-título. Leia sobre esta obra-prima, recém-lançada no Brasil pelo selo Goma-Gringa.

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Não é simples escolher o melhor disco de Fela Kuti. Ele gravou mais de 70, muitos deles com apenas uma música de cada lado do LP, outros com uma única faixa divida nas duas partes do bolachão – e ao longo dos anos 70, período de depuração do afrobeat, sua inspiração nos presenteou com uma coleção impressionante de clássicos do gênero que ele criou e difundiu. É possível afirmar, no entanto, que “Sorrow, Tears and Blood” (1977), que o selo Goma-Gringa acaba de lançar no Brasil, está certamente entre os melhores. Um dos principais combustíveis criativos do músico era a ira e ela fervia literalmente à flor da pele naquele período. Toda a história de confronto político que ele protagonizou em sucessivos embates com o governo nigeriano atingia seu auge. Fela atacava com críticas contundentes e arte; a ditadura vigente respondia com a mais cruel violência.

Quando “Sorrow, Tears and Blood” foi gravado, Fela ainda assimilava o golpe do covarde ataque militar à República Kalakuta, em uma madrugada de fevereiro de 1977. Cerca de mil homens invadiram a residência do músico – onde vivia com as esposas, familiares, muitos dos músicos de sua banda e vários profissionais de seu staff – e tocaram o terror: quebraram tudo, estupraram mulheres, não pouparam nem crianças, incendiaram o lugar e agrediram a mãe do músico, Funmilayo Ransome Kuti, que morreria algum tempo depois em decorrência deste trauma aos 77 anos.

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Fela, portanto, espumava e toda a raiva abasteceu a composição de duas faixas que estão entre as suas melhores. “Sorrow, Tears and Blood” é conduzida por um riff de guitarra que se repete num transe repetitivo e inabalável como uma marcha militar. A bateria de Tony Allen acrescenta sua síncope única e os metais pontuam a faixa com ataques à moda de James Brown; a letra vai com o dedo indicador direto na ferida, sem massagem:  “Everbody Run, Run, Run / Everbody Scatter , Scatter / Some People Lost Some Bread / Some People Nearly Die / Some People Just Die / Confusion Everywhere / Them Leave Sorrow, Tears and Blood / Them Regular Trademark (Todos Correm, Correm, Correm / Todos Dispersam, Dispersam / Alguns Perdem um Pouco do Pão / Alguns Quase Morrem / Alguns Simplesmente Morrem / Confusão Por Toda a Parte / Eles Deixam Tristeza, Lágrimas e Sangue / Sua Marca Registrada”. O arranjo cresce, vários elementos rítmicos e melódicos se somam, se emparelham, trombam, e o riff principal de guitarra só silencia um pouco antes do fim da música, para o sax de Fela chorar as últimas notas amparado pelo acompanhamento de uma outra guitarra.

O lado B estremece os tímpanos igualmente: já sampleada pelo grupo de rap Blackalicious (na faixa “Smithzonian Institute of Rhyme”, do disco “Nia”, de 2000), “Colonial Mentality” tem também um elemento que pontua do começo ao fim – mas, neste caso, é a linha de baixo tocada por Nweke Atifoh. Todo o arranjo gira em torno dela, guitarras e sopros potencializam suas notas, bateria e percussão reforçam seu ritmo. Quando os vocais entram, a dinâmica de pergunta e resposta entre a voz principal de Fela com o coro feminino surpreende logo nos primeiros versos. Fela apenas vocifera as palavras que dão título à faixa e o coro logo faz o contraponto agressivo com uma sequência de frases: “He Be Say You Be Colonial Man / You Dam Be Slave Man Before / Dem Don Release You Man, But You / Never Release Yourself” (“Ele diz Que Você é um Homem Colonial / Você Foi Um Escravo de Merda, Antes / Eles Te Libertaram / Mas Você Nunca se Libertou”). O coro repete o título no refrão em forma de mantra, alternadamente com o ataque dos sopros, e o piano se sobrepõe a todas as camadas do arranjo com uma sucessão frenética de notas que parece emular uma sequência de golpes de Muhammad Ali. E, mais uma vez, o elemento propulsor permanece com os movimentos inalterados, uma mesma linha de baixo do começo ao fim, por cerca de 14 minutos de música.

O lançamento do Goma-Gringa deixa tudo ainda mais clássico: 1) a faixa-título aparece em uma exclusiva versão estendida, com cerca de seis minutos adicionais da parte instrumental que precede a entrada dos vocais; 2) a edição traz um pôster exclusivo, com a belíssima fotografia que estampa este texto; 3) trata-se do primeiríssimo lançamento de Fela Kuti no Brasil; 4) a tiragem oferece apenas 500 cópias em LP. Ou seja: corra para garantir o seu.

(Por Ramiro Zwetsch)

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