Violão mestiço
Reedição de álbum lançado em 1976 pelo músico Luiz Henrique lança luz à obra desse artista que foi um importante personagem da bossa nova e caiu no esquecimento. “Mestiço” mergulha em outra estética, influenciado pela psicodelia e pela soul music estadunidense, e encorpa ainda mais a já inspiradíssima discografia brasileira dos anos 70
Uma névoa se ergue na imaginação quando os primeiros acordes de violão ressoam em uníssono com um vocal murmurado. A percussão provoca um certo mistério e essa introdução de poucos segundos é suficiente para instigar o pressentimento de um som sem precedentes. Baixo e bateria entram em cena embriagados de um aroma emprestado do soul-funk estadunidense e setentista. O piano elétrico vira a página do arranjo com uma surpreendente frase, que leva a música para o ambiente da psicodelia. A voz, então, sussurra os primeiros versos: “Jandira saiu de casa / Não disse pra onde ia / Sabia que não voltava nunca mais / Queria uma vida que fosse mais sua / Chegou na rua / Na rua do parque / Caiu na folia”. O disco nem bem começou e o estrago já está feito no cérebro dos amantes da música brasileira dos anos 70. Que som é esse? Quem é esse cara? Quais são os músicos que integram essa banda?
Estamos na faixa 1 do lado A de “Mestiço”, o álbum lançado pelo catarinense Luiz Henrique, em 1976. “Jandira” é uma explosão no peito do ouvinte de primeira audição-viagem. Embora o violão e a letra em português imprimam na música seu DNA brasileiro, a estética é de uma originalidade que impressiona e remete a associações aleatórias com outros álbuns monumentais lançados na mesma década no país – como o homônimo de Arthur Verocai de 1972 e “Jacarandá” (Luiz Bonfá, 1973). Trata-se de um território fértil da musicalidade tupiniquim, que parte das tradições rítmicas do Brasil para flertar com jazz e soul e alcança o bonito lugar onde os rótulos não dão conta de enquadrar o trabalho em um determinado gênero musical.
“Mestiço” é o primeiro título do catálogo do selo ITAGRA e, até então, jamais havia sido reeditado. É uma joia escondida da vasta produção da música brasileira dos anos 70, que agora chega ao alcance de mais gente e lança luz sobre a obra de um artista importante que foi estranhamente esquecido pela história. Luiz Henrique circulava pelo Beco das Garrafas nos anos 60 e surfou a onda da bossa nova desde os primeiros respingos daquela maresia musical. Dois anos depois de gravar seu primeiro LP, “A Bossa Moderna de Luiz Henrique” (1963), foi morar nos Estados Unidos – onde trabalhou com jazzistas célebres como Stan Getz e Oscar Brown Jr., além de bambas brasileiros como Hermeto Pascoal, Sivuca, Airto Moreira, Flora Purim e João Gilberto. “Mestiço” foi gravado depois de seu retorno ao Brasil e, claramente, expande as fronteiras de sua musicalidade para muito além da batida bossanovista. A pequena tiragem do lançamento – seu amigo e parceiro musical Paulo Fuganti sustenta que foram prensadas apenas 300 cópias promocionais – concedeu o privilégio de sua audição para poucos e bons na época.
Com o passar das décadas, o álbum se tornou cultuado em um círculo restrito de DJs, colecionadores de vinil e pesquisadores da música brasileira. O garimpo que inspira os fissurados em LPs moveu também Caio “YOka” Beraldo na árdua missão de reeditar o álbum em 2022. O homem à frente do selo Somatória do Barulho levou mais de cinco anos para realizar o projeto. Não foi nada simples. Esse tipo de lançamento envolve negociações com familiares, burocracias e descasos da indústria fonográfica e muita dedicação no processo de recuperação das fitas analógicas. YOka, inclusive, pensou em desistir mais de uma vez.
A saga começou com uma consulta às tradicionais páginas amarelas de Florianópolis – para quem não sabe, trata-se de um catálogo com números de telefone dos tempos que ainda não havia internet nem aparelhos celulares. Foi em um desses livros de antigamente que YOka encontrou o contato de Raul Caldas Filho, co-autor de “Jandira”. “Só um senhor de idade teria um telefone fixo registrado nas páginas amarelas, né”, comenta o produtor. Por intermédio do compositor, encontrou Alice, filha mais velha de Luiz Henrique. Começaram as negociações, em um ritmo meio truncado. Foi quando o produtor e DJ Rodrigo Gorky entrou em cena e colocou YOka em contato com outro filho do artista, Raulino, e a coisa começou a fluir.
Algumas fitas magnéticas de “Mestiço” foram localizadas. Nas audições, descobriu-se que ali constava uma sessão aberta do repertório (sem a mixagem e masterização finais) com duas surpresas – uma boa, outra ruim. Havia três faixas inéditas, desconhecidas inclusive dos familiares do músico! Porém, outras três músicas originais do repertório não foram localizadas. Criou-se um dilema, pois o material encontrado exigiria uma nova manipulação técnica das faixas e um outro tipo de trabalho com as que permaneciam desaparecidas – masterizar a partir de um vinil original seria uma opção, mas o resultado ficaria irregular. Raul, então, colocou YOka em contato com Fuganti que, surpreendentemente, tinha em casa a cobiçada fita máster. Mais que uma luz, era o próprio Luiz no fim do túnel: o produtor tinha agora em mãos a peça analógica ideal para masterizar o áudio para a reedição em vinil.
Naturalmente, o processo trouxe ainda novos percalços. “A fita estava bastante deteriorada. Decidi, então, levar para um especialista cuidar dos reparos e da digitalização. O Luis Lopes, do Studio C4, fez o processo de ‘assar’ as fitas, um procedimento extremamente importante para evitar perda de informação musical em material magnético durante a reprodução”, explica YOka. “A fita tinha defeitos que tiveram de ser ‘costurados’ com trechos de outra master digital que o Fuganti tinha e também com pequenos trechos extraídos do vinil. Uma verdadeira cirurgia: fizemos implante, transplante e plástica até chegar no material que temos.”
Até se alcançar o som que agora sai das caixas acústicas em sua casa, portanto, houve um intenso trabalho de arqueologia. A mágica da reprodução em alta fidelidade é só o último instante de um processo que exige empenho em todas as etapas. É um cuidado que faz jus ao esmero da própria concepção de “Mestiço”. Além do violão, da voz, das composições e letras de Luiz Henrique, o álbum ostenta um time de instrumentistas da primeiríssima linha da música brasileira: Laércio de Freitas (piano elétrico), Tenório Jr. (piano), Edson Lobo (baixo acústico), Luizão Maia (baixo elétrico), Edison Machado, João Palma e Paulinho Braga (bateria) e J.T. Meirelles (arranjos de sopros) são alguns dos craques que participaram da gravação.
Esta reedição da Somatória do Barulho não só devolve à tona um álbum inspiradíssimo e ainda desconhecido de muitos, como oferece três faixas inéditas em um compacto que acompanha o LP. Trata-se da reconstrução de uma memória musical, agora materializada neste documento sonoro que gira no seu toca-discos. A cada volta de cada um dos LPs desta nova tiragem, a obra de Luiz Henrique se renova e se afirma como a Jandira da faixa 1 do lado A: “Jandira gostou do mundo / igual uma folha ao vento / livre borboleta a voar / sentiu que a vida também tinha alegria / Jandira cantava / Jandira sorria / Jandira vivia na folia”. Salve, Luiz Henrique (1938 – 1985)!
(Por Ramiro Zwetsch)