Eternamente quilombo

Z´África Brasil _crédito_Christian Braga

Rap é resistência. Em tempos em que o governo se concentra em promover cortes na educação e facilitar o acesso às armas, é sempre bom saudar os clássicos do hip hop brasileiro que abriram muitas mentes para reflexão em torno da ancestralidade africana e as raízes do racismo estrutural que contaminam a sociedade. “Antigamente Quilombos, Hoje Periferia”, disco lançado em 2002 pelo Z’África Brasil, é uma dessas obras que fizeram história e hoje soam assustadoramente atuais. O grupo se apresenta nesse sábado no Sesc Pompeia, em São Paulo, para celebrar o lançamento do vinil do trabalho (que sai pela AMM Recs em parceria com a Vinil Brasil). Radiola Urbana trocou uma ideia com os MC’s Gaspar, Funk Buia, Pitchô e o DJ Tano. Os três primeiros fazem parte da formação original e o último está no lugar que era do DJ Meio Quilo – que também participa do show. Thaíde, Kamau, Lino Krizz e Nalla são convidados da celebração.

Vocês acreditam que o título “Antigamente Quilombos, Hoje Periferia” se tornou ainda mais atual no Brasil de 2019?
Funk Buia –
Na verdade, é um título atemporal. Não tem época. Sempre lembraremos da caminhada que construiu o chão pra gente estar aqui hoje.
Gaspar – Tem uma geração que viveu a época que a gente lançou o disco e outra, de 2002 pra cá, que não conhece esse trabalho. Ao longo desses anos, o trabalho se espalhou por todos os lugares. Ele está nas universidades, nos livros, nas escolas, nos trabalhos de diversos movimentos espalhados pelo Brasil. É um trabalho que contribuiu muito no contexto histórico. Mas, eu concordo com o Buia, é um trabalho atemporal mesmo. Os assuntos que são abordados são pertinentes nos dias de hoje também: ancestralidade africana, diferença social, racismo e as raízes do povo periférico que vêm do quilombo e das aldeias indígenas. É um disco que representa um momento da nossa vida, a gente tinha que colocar esse trabalho pra fora, com todas as contestações da época, que nos dias de hoje não mudaram muito. Tem músicas de contexto histórico como “O Rei Zumbi”, que na época tinha uma luta de 300 anos para transformar o dia 20 de novembro (da morte de Zumbi) em feriado. É uma data histórica para o povo afro-brasileiro. É um disco que traz bastante consciência pra quem quer conhecer a verdadeira história do Brasil.

Um dos pontos do discurso do disco é a questão do racismo. O presidente, recentemente, deu uma declaração dizendo que o racismo é uma coisa rara no Brasil. Vocês acham que de 2002 pra cá, essa discussão evoluiu ou regrediu?
Gaspar – Os racistas mostram mais a cara, hoje em dia. É um vírus, uma doença estrutural. A sociedade brasileira construída nesse sistema colonial é racista. Esse racismo é institucional e estrutural. Tivemos alguns avanços em termos de leis, mas a gente regride totalmente quando elege um presidente como esse, que não tem consciência nenhuma, não tem visão de mundo e não conhece o Brasil por dentro. Basta lembrar como os europeus trataram os indígenas, como se eles não fossem daqui, sendo que são os verdadeiros povos originários brasileiros.
Funk Buia – Você liga a televisão e o padrão que existe é deles, o que tem de preto é como se fosse uma cota. Existe racismo sim e é pesado. Se a televisão, que atinge milhões de brasileiros, não mostra a cara do povo que dá essa audiência, ela é racista pra caramba. No poder, não tem gente de raiz preta ou indígena. Não existe. Nem o pobre está lá representado.
Gaspar – A televisão se torna racista pelos padrões que eles estipulam. A gente está no país que, segundo o IBGE, 60% é afrodescendente – fora os misturados. Nós somos latinos e não existe essa consciência. Pensam que estamos na Europa. O país é afrodescendente e indígena em sua maioria. Eles impõe padrões europeus distantes do que é o povo. A gente não se vê na televisão e quando colocam algumas pessoas lá é pra bater essa tal da cota. O lance das cotas sempre existiu. Todas as etnias que vieram pro Brasil tiveram cotas. Os europeus tiveram cotas. Os militares receberam cotas. Os japoneses receberam cotas. Todos tiveram, menos os indígenas e os africanos. Quando a gente luta por nosso povo nas universidades, as pessoas são contra as cotas. Os militares foram os primeiros a receber cotas. Quando eles vieram da Europa, o governo fez tratados que viabilizaram pedaços de terra, empréstimos em banco, conseguiram cotas pros filhos estudarem nas universidades… Quando nosso povo periférico vai lutar por isso, eles acham que é esmola ou migalha. A universidade deveria ser pra todos. Mas no nosso país, o poder do capital segrega tudo.

O rap é, naturalmente, uma ferramenta de conscientização e contestação. Como ele pode contribuir pra que a gente avance nessa discussão?
Gaspar –
O rap é uma música que faz as pessoas pensarem. A grande indústria promove a música da alienação, que é pras pessoas não pensarem. Quer ser feliz no Brasil, não pense. Você apenas segue as regras preestabelecidas. O rap coloca o dedo na ferida. Mas isso também não é uma regra: o rap te dá liberdade pra falar de amor, falar de tudo.
Funk Buia – A base mesmo é fazer pensar, irmão. A música que mexe com a sua cabeça tem o poder de transformar, sabe? Se ela te faz refletir, alguma coisa vai mudar. O papel do rap é mexer com a mente.
Gaspar – Não existe tema. “O rap tem que falar de periferia, tem que ser do gueto…”. Não existe tema pro rap, é ritmo e poesia e você se expressa da maneira como você se sente melhor. Não tem limite. E falar de amor é uma forma de fazer a revolução também.
Pitchô – Mas pode ter certeza que o Z’África sempre vai ter uma música que vai falar sobre esses temas que estão na base do “Antigamente Quilombos, Hoje Periferia”. Ou do racismo, ou da violência… Faz parte da nossa vivência, onde a gente mora, com quem a gente anda… Isso nunca vai sair do nosso repertório.
Gaspar – A gente canta o que a gente vive. Isso é o mais importante. Musicalmente, a nossa visão é mais ampla e não se restringe ao estilo rap. O nosso jeito de cantar é baseado na cultura do MC e do DJ. Mas a nossa forma de fazer música tem muita referência do reggae, do ragga, do samba, da embolada, do côco, do baião, do repente, do maracatu, da literatura de cordel, da umbanda… A gente tem muito disso e tenta colocar isso nas músicas.

A letra da música “Antigamente Quilombos, Hoje Periferia” questiona justamente o abastecimento de armas na periferia. Como vocês acham que esse decreto que facilita o acesso às armas vai bater na quebrada?
Funk Buia – Papo reto? Só tem louco, tio! Você vai jogar uma pá de revólver na mão de um monte de cara que não tem consciência? A primeira coisa que a gente deveria fazer é investir justamente onde ele está tirando o dinheiro, que é na educação. Educação, cultura e esporte formam o cidadão. Esse decreto é um sinal de que ele (o presidente) deve fechar com a (fabricante de armas) Taurus, deve estar ganhando um dinheiro pra deixar esse mercado crescer no Brasil.
Gaspar – Quem está armado no Brasil? É a elite burguesa e os militares. Eles conseguem pagar R$ 5 mil pra tirar um porte, comprar 90 cartuchos. Quem da periferia que vai comprar arma com 90 cartuchos? R$ 5 mil é só pra tirar o porte, fora comprar a arma… Os militares entraram no poder em 1964, saíram em 1988 e esperaram 30 anos pra voltar. Todo mundo sabe que eles enriqueceram no Brasil durante a ditadura e vão tentar enriquecer de novo agora em quatro anos. Por que o Eduardo Bolsonaro está preocupado com arma nuclear no Brasil? Todo mundo sabe que quem financia as guerras está envolvido com petróleo e tráfico de armas. Quem está armado são as facções, as milícias, a burguesia e os militares. Tem uma frase do B-Boy Banks que faz parte da nossa vida hoje: “a nossa luta nas quebradas é para que os livros cheguem antes das armas”. Na quebrada, ninguém gosta de polícia, porque quando eles vão lá, eles esculacham. Pagar um advogado na periferia, todo mundo sabe que é caro. Nosso povo também não é acostumado a fazer tratamento psicológico. A opressão policial, em poucos meses de novo governo, a gente já sente na quebrada. E agora tem essa de excludente de ilicitude. Os caras já matavam sem perguntar, agora eles têm o aval. Eles têm o direito de matar e ainda são condecorados. Já faziam isso, mas agora está no papel. O povo “de bem” pode se proteger. Mas o povo de bem é o nosso povo. Eles são o “povo de bens”. Essa é a diferença.

Então dá pra dizer que eu poucos meses desse novo governo, a quebrada já sentiu a diferença?
Gaspar – Com certeza. Até a guarda municipal está matando.
Pitchô – Como você para um carro e dá 80 tiros em uma família inocente?
Gaspar – Esse é o Brasil: é oito ou 80.

Qual é o significado de lançar esse disco em vinil 17 anos depois?
Pitchô –
É um sonho. A gente sempre quis lançar em vinil. É o nosso primeiro disco. Todo mundo que participou e trabalhou nesse disco está aí. Estão vivos, estão bem, vão participar com a gente no show de lançamento. É um prêmio mesmo. Quando a gente começou, a gente nem sabia que ia dar nisso.
Gaspar – É importante falar que nós somos amantes do vinil, a gente vive essa cultura.
DJ Tano – De cinco discos gravados pelo Z’África, esse é o que mais repercutiu. A partir de 10 de junho, vai ser distribuído entre as lojas. Teremos venda física lá no show e já está rolando pré-venda no site da banda e em outros sites parceiros. Os primeiros 100 que estão na pré-venda saíram com uma série limitada, com a cor translúcida e umas manchas vermelhas como se fosse de sangue. Os outros são inteiramente vermelhos.

E o vinil faz parte das origens da cultura hip hop. Como é pra uma banda importante do rap nacional finalmente lançar seu primeiro vinil?
DJ Tano – É um registro fundamental, porque a maioria dos grandes grupos de rap já tem vinil prensado. Agora pretendemos lançar os outros também.
Funk Buia – E tem vários DJs que só tocam com vinil, né?
DJ Tano – Tem DJs que mantém essa raiz, né? O pessoal da Discopédia, por exemplo, toca só com vinil. Então tá aí o disco do Z’África pra entrar no repertório dos caras também.

Qual é a importância do disco na trajetória do Z’África?
Pitchô – O processo foi muito especial. Aprendemos muita coisa. Ficamos muito tempo trancado no estúdio, ouvindo muita música. Tinha muito cara bom envolvido: Érico Theobaldo, Théo Werneck, André Abujamra… Esses caras estavam tudo com a gente. Quer dizer: a gente estava com os caras, eles ensinaram muita coisa. A gente era moleque, tudo era novo. Muitas pessoas especiais participaram do disco: Lino Krizz, Thaíde, Simone Soul, Sol, Vitor da Trindade, a rapaziada do Assassin, o Tanque…
Funk Buia: E tinha uma cobrança. A gente já fazia bastante show, mas não tinha o disco. Hoje o bichão tá vivão aí.
Gaspar: E esse disco proporcionou que a gente pudesse sair da quebrada, entendeu? A gente ficava muito naquele mundinho. Viajamos o Brasil, conhecemos outros países, esse disco fez com que a gente saísse da quebrada e conhecesse vários lugares que nunca imaginamos conhecer. Criamos uma estrada.

Vocês percebem que é um disco que influenciou outros trabalhos ao longo dos anos?
Pitchô – Eu acho que influenciou muito. Nessa época, o rap era muito pesadão. A gente veio com várias inovações.
Gaspar – “Hip Hop Rua” é uma música com a rima rápida. Hoje é fácil, você vê os moleques com o “speed flow”.
Funk Buia – A gente já fazia isso aí.
Pitchô – “Dom da Rima” a gente fez toda em cima de beatbox, isso era novo. Influenciou muita coisa. Depois desse disco, o cenário mudou um pouco.

E os elementos brasileiros, isso também não era algo assim tão comum…
Funk Buia – O Z’África sempre teclou nessa parada do que é nosso, tá ligado? A riqueza de ritmos é muito abundante: tem capoeira, os ritmos afro-religiosos, forró, xaxado, frevo, samba, umbigada, jongo… Ritmos infinitos. A gente explora isso pra fazer nosso rap. Esse disco é todo feito em cima da nossa brasilidade.
Gaspar – E a pesquisa musical também. A gente ia pra casa do Théo Werneck e ficava ouvindo muito vinil lá. Tinha essa coisa também de chamar os músicos pra tocar junto com o sampler, colocar elementos orgânicos junto com a batida eletrônica. A gente teve um cuidado de olhar mais pro Brasil pra não ficar tão preso ao rap estadunidense. Mas tem muita influência deles também, das batidas e dos funks que a gente sampleou. Mas tem sample de forró, tem Trio Nordestino, influência da capoeira.
Funk Buia – Tem um sample do Los Tropicanos, que é uma banda mexicana.

No show, vocês vão fazer os arranjos originais?
DJ Tano – Estamos ensaiando. Os músicos estão tirando os timbres e as notas pra fazer o mais próximo do original. O Érico está usando MPC pra tirar os mesmos timbres de bumbo e caixa, reforçando junto com a banda. A maioria das músicas está com arranjo original pra, quando bater, o público já identificar.

Vai lá:

Z’África Brasil – show de lançamento do vinil “Antigamente Quilombos, Hoje Periferia”

Quando: sábado 25/05, às 21h

Onde: Sesc Pompeia – R. Clélia, 93

Quanto: R$ 30,00

 

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