Aleluia, Mateus

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A profundidade que há no timbre grave de Mateus Aleluia está também no seu olhar. Enquanto caminha, ele quase sempre murmura alguma melodia – se recém-criada ou trazida de alguma memória do inconsciente, não se sabe. No palco, sua mágica não falha: o mantra ancestral embala os espectadores e os conecta com emoções internas e misteriosas. Nesta sexta, 29, ele apresenta o show “Aclamação a Olorum” no Sesc Pinheiros, em São Paulo. Aos 75 anos, o artista experimenta o reconhecimento de sua obra recente – dos discos “Cinco Sentidos” (2010) e “Fogueira Doce” (2017) – e também do legado do grupo Os Tincoãs, do qual foi integrante nos anos 70 e 80. O trio fez relativo sucesso na época, com apresentações em programas da Globo, músicas executadas nas rádios e participações em álbuns de Martinho da Vila. Atualmente, no entanto, o interesse em torno desse repertório só faz crescer e os discos “O Africanto dos Tincoãs” (1975) e “Os Tincoãs” (1977) serão finalmente lançados nas plataformas digitais em abril. Em 2017, foi lançado o livro “Nós, Os Tincoãs”, que compila textos sobre a importância e a história do grupo.

Mateus Aleluia se tornou integrante da segunda formação do grupo e o primeiro disco que gravou com eles foi “Os Tincoãs”, de 1973. Antes disso, o trio havia gravado o álbum “Meu Último Bolero” (de 1961) com uma formação que trazia Dadinho, Heraldo e Erivaldo. A entrada de Aleluia (em substituição a Erivaldo) coincidiu com a mudança de abordagem no repertório e os boleros são substituídos por cantos afro-religiosos, sob a inspiração dos cultos de candomblé e umbanda – algo onipresente no cotidiano dos moradores de Cachoeira, cidade do Recôncavo Baiano onde o grupo se formou. Além das melodias cantadas sob as levadas originais tanto no violão de Dadinho quanto no atabaque de Mateus Aleluia, destacavam-se as sofisticadas harmonias vocais desenvolvidas para entoar as letras de louvação aos orixás. Nos discos de 1975 e 1977, essa amálgama ganhou adornos de sopros em arranjos assinados por duas lendas da música brasileira daquele período: o saxofonista e líder da Banda Black Rio Oberdan Magalhães e o pianista João Donato.

Em 1983, Dadinho e Mateus Aleluia se mudaram para Luanda, em Angola. A visita que seria de poucos dias para algumas apresentações com o grupo, se estendeu para um período de dois meses para projetos ligados à secretaria de cultura. Badu, que integrava o trio desde 1976 (substituindo Heraldo), não topou o compromisso de esticar a estadia na África. Os Tincoãs se tornaram, então, uma dupla que gravaria mais um LP em 1986 (“Os Tincoãs – Dadinho e Mateus”) e ficaria definitivamente em Luanda. Mateus abriu uma pequena empresa de publicidade na cidade, que faliu em 1997. No ano 2000, um derrame cerebral levou Dadinho, que havia aberto uma padaria por lá. Em 2002, Mateus retornou ao Brasil e, desde então, observa o processo de redescoberta da obra dos Tincoãs. A Radiola Urbana se encontrou com ele na quarta 27/03, logo depois de um ensaio no estúdio do Silvinho, no Sumaré, zona oeste de São Paulo.

O que o senhor está preparando para este show no Sesc Pinheiros?
É a continuidade de tudo aquilo que a gente faz. É como eu costumo dizer: nós não fazemos nada de novo. Trazemos o que nós somos quando meninos e, quando somos velhos, somos apenas meninos com a cabeça branca. Nós não mudamos muito, as pessoas é que nos veem diferente. Logicamente, nos adaptamos. Esse show, no fundo, é o mesmo que nós fazíamos com os Tincoãs: traz entretenimento, a informação cultural, a oração, o riso, a comédia, o drama, a crença e a descrença. O nome do show é “Aclamação a Olorum”. Olorum é uma divindade, uma energia, é além do céu. Não é o céu, é além. O que é uma aclamação? O que é um clamor? Isso é o show: é uma pergunta.

É um show com um recorte mais ancestral? Onde está esse recorte ancestral?
Essa busca de ter um contato mais próximo conosco, que nós somos a nossa ancestralidade. Eu sou a continuidade de todos aqueles que me precederam. Quando eu me for, eu serei a continuidade de todos aqueles que estão seguindo a minha trilha – de forma sanguínea, com ideias, o que for. Nós não estamos aqui sozinhos, não estamos desligados de nada. A gente é que se sente assim. Quando a gente fala da ancestralidade, quer dizer que nós estamos procurando onde está realmente esse fio condutor. Onde está essa coisa que nos faz nos sentir tão impotentes e, ao mesmo tempo, tão fortes? Onde está tudo isso que faz com que a gente tenha mais prazer em ter do que em ser? Onde está tudo isso que faz com que a gente se pergunte: a vida nos foi dada há milhões de anos e o que a gente fez com essa vida que nos foi dada? Estamos com os mesmos problemas dos nossos antepassados. Até parece que nós somos aqueles hominídeos, parece que a evolução da espécie só serviu a gente na forma mais palatável, mais apresentável. É como um amigo meu, um médico cigano, me dizia: “o homem evoluiu muito do ponto de vista técnico. Do ponto de vista humano, ele continua perverso como sempre, fazendo as mesmas perversidades”. Então, quando a gente se volta pra ancestralidade, é justamente pra isso: se perguntar qual é o nosso papel nisso tudo. A competição continua. A guerra dos espermatozoides continua depois que eu venci, já não sou mais um projeto. Aquela correria toda daqueles milhões que saíram comigo pra pegar o óvulo e somente eu que peguei, né? Isso é engraçado. Acabou aquela guerra, mas continua aqui. Essa busca da ancestralidade é justamente isso: buscar essa verdade, essa coisa que possa nos acalmar, buscar isso que nos tire dessa inquietude. É por isso que eu me volto pra ancestralidade. Mas ao mesmo tempo, eu quero ver na frente.

Como será o repertório? Tem coisas dos Tincoãs, dos seus discos mais recentes também, músicas inéditas?
Tincoãs eu sempre trago, tenho que trazer. Músicas da ancestralidade vai haver, até aquelas que ninguém nunca gravou – nem mesmo eu, nem os Tincoãs. Vai trazer músicas dos Tincoãs, minhas, de umbanda, do candomblé, do repertório sacro da igreja católica – mas fazendo releitura. Enfim…

E o senhor deve lançar um disco novo ainda esse ano pelo Selo Sesc, né?
Acredito que sim. A produção é do Ronaldo Evangelista. Eu brinco com ele: Ronaldo, o evangélico. Ele é o produtor. Nós acreditamos que esse disco será algo que vai nos inquietar um pouco, aquela inquietude benéfica, que faz com que a gente saia do nosso local de conforto. Essa é a nossa meta sempre. Só quando nós somos cutucados por alguma coisa, a gente evolui. Senão, a nossa tendência é ficar parado e não é legal.

Quais são as suas lembranças da primeira formação dos Tincoãs?
Lembro de tudo perfeitamente. Nós todos éramos amigos da mesma cidade, era como se fôssemos da mesma família do ponto de vista de identidade real, de identidade cultural de um povo. No Vale do Paraguaçu, de onde eu sou oriundo, todos nós comungamos dos mesmos princípios – tenhamos consciência disso ou não. Tanto Heraldo, como Dadinho, como Erivaldo, eu os conhecia – eles eram mais velhos do que eu, mas pouca coisa. Dadinho era o mais velho de todos; Heraldo, nós fomos colegas no ginásio. Erivaldo, nós cantávamos juntos em um coro – famílias irmãs. E assim por diante. Me lembro praticamente de tudo, me lembro quando eles chegaram em Cachoeira, depois que gravaram o disco “Meu Último Bolero”. Aquilo era o primeiro disco gravado por alguém de Cachoeira, quiçá, por alguém da redondeza. Pelo que eu sei, só quem tinha gravado na Bahia era Waldick Soriano, Anísio Silva, Codó – não tinha tanta gente assim gravando nessa época. Quando os Tincoãs gravaram foi um sucesso na cidade e na região. Eu os conheci bem, era um fã ardoroso.

Gerou um orgulho na cidade?
Muito grande – não só na cidade, mas na região toda.

Como acontece a virada no repertório do grupo, do bolero para as canções afro-religiosas?
Penso eu que iria acontecer naturalmente comigo ou sem. Mesmo se mantivesse a primeira formação, penso eu que iria acontecer. Aconteceu, estando eu. Pronto. Não fica bem eu falando disso, porque do trio da minha época só tem eu. Eu vou falar o quê? Não tem os outros dois pra confirmar o que eu falo. Você entendeu? Eu respeito muito a ausência. Penso que, de qualquer maneira, o trio iria entrar por esse processo que estamos até hoje – eu continuo. Penso que seria o caminho.

Até que ponto o ambiente de Cachoeira foi uma inspiração pro grupo?
Sem Cachoeira, nós não faríamos nada disso. Desde o disco de bolero que eles fizeram até a temática pautada no culto. Pra mim, a cultura vem do culto. Se não houvesse culto, não haveria cultura. É o culto que tem uma disciplina de hábitos e que você faz todo dia de uma forma repetida. Depois, aquilo, com o passar do tempo, se torna uma cultura e vai aos poucos criando as mutações daquilo. O culto do candomblé e o culto do catolicismo formaram a amálgama cultural em Cachoeira que deu a possibilidade para os Tincoãs fazerem aquele trabalho. Nós éramos embalados à noite pelos toques do candomblé – isso, para quem fosse do candomblé ou não. Quando o rum, o rumpi, o lê (atabaques) tocavam nas casas de santo (era na periferia, porque na época era proibido), aquilo ressoava por todo vale. Era bonito, todo mundo se embevecia. Mesmo quem não fosse do candomblé, gostava da musicalidade. Aquele mantra rítmico, harmônico e melódico invadia todo mundo de forma direta ou contornada. Nós éramos envolvidos. De manhã, nós éramos despertos pelos sinos da Igreja Matriz. E depois, quando começava a missa, era o órgão da igreja que tocava e também inundava a cidade toda. Nós já tínhamos essa formação espontânea: era o candomblé durante toda noite e, nos primeiros raios da manhã, o catolicismo invadia as casas também. Querendo ou não, nós tínhamos essa informação. Alguns lá nem sabem que têm. É a forma indutiva de formar pessoas. Nós fomos formados assim.

O senhor acha que o grupo, com seu relativo sucesso nos anos 70, ajudou de alguma forma a combater o preconceito das pessoas com o candomblé e com a umbanda?
Creio que sim. Depois do trabalho dos Tincoãs, a música do candomblé passou a ser vista de outra forma. Não é que tenham sido os Tincoãs os primeiros a fazer isso – botar em disco as músicas da religiosidade africana no Brasil. Não! Joãozinho da Gomeia, Luís da Muriçoca, JB de Carvalho já haviam feito… Mas não sei se eles tocaram nas pessoas como tocaram os Tincoãs: a forma de harmonizar a música, de abrir em vozes, pegar aqueles cantos e vir com uma técnica vocal sofisticada… Aquilo, de uma certa forma, adoçou o sentido das pessoas para a musicalidade oriunda dos terreiros de candomblé e umbanda e fez com que as pessoas fossem se desarmando um pouquinho. Com relação ao preconceito, creio que sempre vai haver. É preciso que a gente tenha essa consciência. Penso que os Tincoãs, hoje em dia, estão bem vivos com ou sem preconceito. Conseguimos firmar o propósito do trabalho que estávamos fazendo e que eu faço ainda. Penso que isso nunca foi uma pedra no sapato. Havia várias dificuldades, mas sempre há. Temos que largar a sacola mais pesada pra andar de uma forma mais rápida. Não podemos carregar essa sacola de preconceito nas costas porque ela pesa muito e é isso o que as pessoas que nos oprimem, querem: que a gente fique falando do preconceito e não ande. Não! Nós temos um trabalho a fazer e estamos mostrando.

Como os arranjos de João Donato e do Oberdan Magalhães contribuíram pra música dos Tincoãs nos discos de 1975 e 1977?
Contribuíram muito. Oberdan era da Banda Black Rio, trazia já toda uma modernidade dentro daquela música negra do Rio de Janeiro, com aquele talento que era próprio ele. João Donato, nem se fala: toda aquela força jazzística, mas com a visão totalmente brasileira. Donato tinha voltado pro Brasil recentemente quando nós o conhecemos, ele estava voltando dos Estados Unidos. A contribuição dele está na cara, em tudo do que ele fez conosco. Não há dúvidas. Nem há o que se comentar, apenas se curte. Vou comentar o ar que eu respiro? Não, eu continuo respirando. O que o João Donato e o Oberdan fizeram com os Tincoãs? Maravilha de cenário.

O senhor diz que a música surgiu antes do homem, né?
É um princípio bíblico, né? Antes de tudo, houve a palavra, o verbo. Eu digo: não, antes de tudo veio a música – senão o verbo não seria dito. O verbo para ser dito é preciso que o homem fale; para que o homem fale, é preciso haver o som. E quando é que o homem apareceu nesse mundo? Antes do homem aparecer, o mundo estava todo feito. O homem foi a última criação. Já pensou nessa sinfonia da criação? Os elementos se movendo. É terra se misturando com água. O vento. O criptar das chamas. Uma folha batendo na outra. (Enquanto fala, Mateus imita os sons de cada um desses elementos). Não há percussão que se compare a tudo isso. Não há violino que faça nada parecido com a ventania. Não existe. A sinfonia da criação de tudo, da mistura dos elementos, deve ter sido uma coisa linda. Então, antes de tudo houve a música e a partir dela é que foram surgindo as outras coisas.

O que te levou a morar em Angola por quase 20 anos e o que senhor trouxe na bagagem de volta?
O que eu trouxe é o que eu levei. Não vejo muita diferença, a não ser a diferença que a gente quer ver. Martinho da Vila me disse uma vez, em Luanda: “agora eu entendi por que você ficou aqui: você saiu de uma baía pra outra, da baía de Salvador pra baía de Luanda”. Em poucas palavras, ele viu o porquê. Quando eu cheguei lá eu vi uma baía da minha época de criança. Aquelas pessoas todas se pareciam comigo, se pareciam com a minha família. A forma de ser e tratar as pessoas – como era antigamente, porque nós mudamos muito. Não é à toa que a gente cantava “meu pai vem de Aruanda” (“Deixa a Gira Girar”, 1973). Aruanda é a corruptela de Luanda. Luanda, para todos nós afrodescendentes do Brasil, era como se fosse Shangri-la. O nosso desejo era de conhecer um lugar de onde todos nós viemos, um ponto da África. Quando chegamos em Angola, quando pisamos pela primeira vez em Luanda, pisamos em Aruanda. Quando colocamos o pé na terra, pensei: “esse espaço me pertence”. Eu estava voltando para o meu umbigo. Houve essa empatia. Nós fomos pra Angola e lá ficamos. Fomos em solidariedade com os países de língua oficial portuguesa em África recém-independentes. Lá ficamos dentro dessa filosofia política de querer uma sociedade mais igualitária. Fugindo das perseguições daqui, fomos pra lá porque achamos que lá havia um almejo de vida que dignificasse o homem. O que eu trouxe de lá? Tudo que eu levei, pois antes de conhecer Angola, eu já cantava que meu pai tinha vindo de Aruanda. Levei todo um passado que eu nunca vi, mas que era tão presente, que não era passado. Pra nós, né? Porque Dadinho acabou falecendo lá, foi sepultado lá. Minha esposa é de lá, tenho filha angolana que hoje mora na Espanha. Tenho toda uma vida lá, amigos, família…

E parece que exatamente no momento que o senhor volta ao Brasil, renasce o interesse do público mais jovem pela obra dos Tincoãs. Como o senhor vê isso?
A gente conjectura, né? Saber o porquê é complicado. Nós nunca sabemos. Como é que eu vou explicar por que Van Gogh só foi reconhecido tantos anos depois da morte dele? É difícil. Eu voltei, mas mesmo antes disso, eu vi o Carlinhos Brown cantando uma música dos Tincoãs no primeiro dia do ano, em Salvador. Ele cantou “Na Beira do Mar” e falou dos Tincoãs, dizendo que tudo que havia acontecido com a música da Bahia havia começado com a gente. Nem começou, mas ele afirmava isso. Carlinhos e Margareth Menezes são pessoas que nunca deixaram de falar dos Tincoãs. Por coincidência ou não, foi ele quem me botou na vida artística novamente quando me chamou pra gravar com ele no filme “O Milagre do Candeal” (de Fernando Trueba, 2004). Eu não pensava em voltar pra vida artística, ele me estimulou. E as coisas foram acontecendo sem que eu me desse conta. Meus planos eram outros.

Como o senhor se sente diante dessa repercussão que a música dos Tincoãs tem hoje em dia?
Vale a pena. Não abandone seu sonho pelas dificuldades que aparecerem. Você tem que acreditar, você tem que saber que o que você faz é o que você quer. Você tem que procurar ser, não procurar ter. Isso é muito importante pra definir isso. Penso que quando gravamos os discos, alguma verdade nossa havia naquilo. Os Tincoãs foram reaparecendo sem ninguém puxar. É como se fosse uma pepita de ouro que foi parar no fundo de um lamaçal por uma intempérie qualquer. Um dia vem a chuva, varre tudo e o ouro volta a brilhar. É a impressão que dá. Não houve a presença de nenhuma empresa pra tirar aquela pepita do fundo da lama. Aconteceu mais ou menos isso com os Tincoãs. É a raiz que de repente vem dizer: “você pode ser o fruto, mas sem raiz não haveria fruto”.

Vai lá:

Mateus Aleluia

Quando: 29 de Março

Onde: Sesc Pinheiros (Rua Paes Leme, 195)

Quanto: R$ 40,00 (inteira), R$ 20,00 (meia), R$ 10,00 (comerciários)

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