Nadando de braçada
Jards Macalé aprendeu a nadar. Faz tempo. “Sou de peixes, pô, nado desde pequenininho”. Mesmo assim, nos anos 70, agentes da ditadura frequentemente batiam à sua porta no Rio de Janeiro e perguntavam se ele topava dar uma voltinha nada amistosa pela Baía de Guanabara. O “convite” vinha sempre acompanhado da pergunta capciosa: “você sabe nadar?”. A prática era comum e a ameaça visava amedrontar a arte, matá-la por afogamento. Jards, então, lançou seu segundo LP em 1974 e o batizou de “Aprender a Nadar”. “Fui à forra. O lançamento do disco foi em uma grande barca na Cantareira e eu me lancei na Baía de Guanabara por livre e espontânea vontade”. Hoje, aos 75 anos, esse bendito compositor brasileiro nada de braçada. O recém-lançado disco “Besta Fera” já se anuncia como um dos grandes acontecimentos da arte brasileira em 2019 e devolve ao seu público algo que estava adormecido há 20 anos: um trabalho só com composições inéditas. O título do álbum, suas letras e uma certa sombra que envolve a maioria dos arranjos remetem ao mesmo terror que assombrava o Brasil 45 anos atrás. Romulo Fróes assina a direção artística. A produção é de Thomas Harres e Kiko Dinucci – o primeiro toca bateria e o segundo gravou violões, sintetizadores e samples.
– Jards, por que “Besta Fera”?
– É porque estamos vivendo um momento de bestas feras, né? A besta fera é um bicho do folclore português, essa história é muito ouvida na cidade de Amarante. Eu ouvi essa coisa de “besta fera” e também encontrei no poema “Aos Vícios”, do Gregório de Matos. Tem um momento em que ele fala “somos todos ruins, somos todos perversos” e ali ele fala de “besta fera”. Aí eu fui no wikipedia e vi que é isso aí, é um monstro assustador do folclore português. E, por incrível que pareça, aqui no Piauí, tem uma cidade também chamada Amarante, onde se acredita que besta fera existe. Então tem toda essa ligação. E estamos vivendo um momento “bestaferice” no mundo, pô. Aqui no Rio de Janeiro, por exemplo, em um lugar de alta classe média, onde existia um casal de cisnes negros em um lago, que eram chamados de Romeu e Julieta… Eles estavam ali há um tempão embelezando o jardim, o lago. Não é que foi lá uma besta fera e esfaqueou a Julieta, porra? Essas tragédias que estão acontecendo em 2019… Já aconteceu tanta maluquice, tanta tragédia…
O caso ocorreu no Parque Guinle, no dia 29 de janeiro. Suspeita-se que a cisne tenha brigado com um cachorro. O dono do cão, então, teria sacado a faca e assassinado a Julieta. A imagem de um animal ensanguentado não surge à toa na conversa. “Besta Fera” tem muitos signos e símbolos associados à violência. A primeira faixa é “Vampiro de Copacabana”: o baixo de Pedro Dantas martela uma mesma nota em andamento que não faz mais do que marcar o ritmo; guitarras e sintetizadores se trombam e cambaleiam em distorções e sons que parecem rasgar algo com uma serra. Suspense. A voz então surge, quase uma narração: “Ah, corpo no breu / Ah, dama da noite / Ah, caminho torto / Ah, olhos de sangue / Viro um vulto / Vago no escuro / Pela avenida / Pela Raimundo / Pelas esquinas / Só gente estranha / E pelos bares / Copacabana”. Na sequência, vem a versão de Macalé para o citado poema de Gregório de Matos e o clima é até singelo. O sambinha é quase solar, a melodia traz conforto adornada por cavaco (de Rodrigo Campos) e sax (Thiago França). Já a letra, é aquilo, tipo lâmina na pele do bicho: “a ignorância dos homens destas eras / sisudos faz ser uns, outros prudentes / que a mudez canoniza bestas feras”.
A seguir, “Trevas”. Ou melhor: “Trevas”! Há um ponto de exclamação quando Jards canta essa palavra. A música é outra adaptação para poesia – essa do norte-americano Ezra Pound, com tradução dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari. A gravação foi a primeira do repertório a ser divulgada, com o clipe dirigido por Gregório Gananian e Gabriel Kerhart. O que se ouve é um tipo de rock que remete ao primeiro disco do compositor, “Jards Macalé”, de 1972. Há uma intenção clara de estabelecer uma conexão com a linguagem do power trio que tinha Jards (violão), Lanny Gordin (baixo e violão de aço) e Tutty Moreno (bateria). “O ‘Besta Fera’ é primo irmão do disco de 1972, acrescido de outras ideias, de outros instrumentos. O Kiko, o Romulo e o Thomas falavam muito disso. Aquele disco é uma referência pra eles e o ‘Besta Fera’ é da mesma família”, diz Jards. Nesse sentido, chama atenção a unidade que se estabelece entre Thomas Harres, Pedro Dantas e o guitarrista Guilherme Held. Há, sem dúvida, uma profundidade no estudo daquela química de 1972 que se faz ouvir não só em “Trevas”, mas também em “Meu Amor e Meu Cansaço” e “Tempo e Contratempo”. Já o momento em que a voz de Macalé surge dentro de um balde d’água para cantar / borbulhar “chegamos ao limite da água mais funda / levanta o olhar pro céu”, a associação que se cria é com a história por trás de “Aprender a Nadar”.
– Como surgiu essa ideia, de cantar com a boca dentro de um balde?
– Essa história é engraçada porque o pessoal estava almoçando lá no Red Bull Station (em São Paulo, onde o disco foi gravado). Aí eu, escondido, peguei um balde cheio de água, e falei pro técnico que estava no estúdio: “bota o microfone aí e vamos gravar um lance”. Ele trocou de microfone, porque a gente estava usando um que custava 50 mil dólares. Aí quando o pessoal voltou, eles levaram um susto e bateram palma – porque eles são loucos também, né?
– Isso remete à sensação de afogamento, né? Tem a ver com “Aprender a Nadar”?
– Aí sim: esse é o sentimento. Será que eu aprendi a nadar no fundo do poço?
Embora “Besta Fera” seja um disco de banda e com várias outras participações de instrumentistas (como Luê na rabeca e Ariane Molina na cuíca, por exemplo), há uma beleza rara nas duas faixas em que só se ouve Jards na voz e no violão. Kiko Dinucci declarou recentemente ao jornal online Nexo: “Para mim, ele é o grande discípulo do João Gilberto, aquele cara que fala ‘vou tocar ‘Aquarela do Brasil’ e daí transforma numa música dele, com a linguagem dele, se apropria. Ele fez muito isso e acabou deixando a composição própria um pouco de lado”. Nesse minimalismo de cordas vocais e acústicas, no entanto, o discípulo busca um caminho em que as imperfeições não só são toleradas como ajudam a construir a surpresa e valorizam a interpretação. Timbre e acordes arranham sem perder a elegância e tornam “Obstáculos” e “Valor” muito especiais no repertório.
– Em uma entrevista recente, o Kiko Dinucci disse que, pra ele, você é o maior discípulo de João Gilberto. Você gosta dessa comparação?
– Eu me apliquei bastante, né? Gosto da comparação, imagina se não vou gostar. O João me chamou várias vezes pra casa dele, foi na minha casa, a gente tocou e se tornou amigo. É uma honra. Ele me mostrou “a batida”. Uma vez, ele tocou pra mim a mesma batida durante horas seguidas. Depois eu cheguei em casa, peguei o violão e toquei a batida. Depois, ele me ligou em casa e me disse (ele me chama de “Macalas”): “Macalas, a bossa nova não existe, o que existe é samba”. Aí eu virei PHD né, bicho?
Ainda que o repertório de “Besta Fera” traga 12 composições inéditas, Macalé é autor de apenas duas letras: “Obstáculos” e “Tempo e Contratempo”. Além dos poemas adaptados, o artista desenvolveu melodia para versos de nomes da música brasileira contemporânea como Ava Rocha (“Limite”), Rodrigo Campos (“Peixe”) e Tim Bernardes (“Buraco da Consolação”). “Vampiro de Copacabana” e “Meu Amor e Meu Cansaço” foram escritas por Kiko Dinucci e Romulo Fróes, respectivamente. Há ainda “Longo Caminho do Sol”, com letra de Clima e um elemento surreal – o coro da Velha Guarda da Nenê de Vila Matilde que versa, com doçura e ironia, a bomba H. “Eu abençoo as músicas dos outros e as torno minhas”, diz. Realmente: é de se espantar como, mesmo pelos versos emprestados por outros letristas, todo o conteúdo lírico é perfeitamente afinado com a veia poética de Jards. Associa-se, inclusive, com uma tal “morbeza romântica” – neologismo criado por seu parceiro Wally Salomão, para suas composições dos anos 70 que reuniam tanto morbidez como beleza. “Foi o Wally que inventou essa história, da ‘morbeza romântica’. Ele queria fazer justamente um bloco de músicas que tivesse uma definição, músicas muito cínicas e ‘nelsoncavaquinianas’”, lembra Jards. “Aquela coisa da dor profunda, da dor exacerbada, que na música brasileira sempre existiu. Antes eram sambas-canções, entre outras coisas, agora é a tal da ‘sofrência’, que é um horror aliás. A morbeza é muito mais bem feita, muito mais construída como poesia, como intenção poética, propositalmente distorcida.”
Por falar em Nelson Cavaquinho, é memorável o fim de um show que Jards Macalé fez no Auditório Ibirapuera no dia 3 de março de 2013 – ocasião de seu aniversário de 70 anos. A última música do repertório foi a clássica “Juízo Final”, do sambista carioca. Jards, então, avisou ao público: “o show acabou, mas vocês vão continuar cantando. A gente vai sair do palco, vocês vão levantar das cadeiras e descer até o hall cantando essa música”. Foi o que aconteceu.
– As pessoas cantaram versos “do mal, será queimada a semente” e “quero ter olhos pra ver a maldade desaparecer” como se fosse uma reza ou um hino…
– A ideia era essa. Eu me emocionei. Rapaz, essa letra é a luz que pode vir a pintar no Brasil. Tomara que pinte luz. O bem tem que ganhar do mal, pela luta. Tomara, senão como é que vai ser? Só trevas não, né? Tem que ter luz.