Motown, Gaye & Wonder

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O legado da Motown é algo indiscutível: primeira gravadora gerida por negros, alavancou o surgimento e a consolidação da soul music, emplacou uma infinidade de hits nas paradas da Billboard nos anos 60 e 70 e projetou vários artistas para a eternidade da música – Donna Summer & The Supremes, Michael Jackson, The Temptations, Martha and the Vandellas, Smokey Robinson, Lionel Richie & The Commodores, etc. A gravadora de Detroit completou 60 anos em 12 de janeiro de 2019 e, desde sua fundação, em 1959, pavimentou parte importante daquilo que hoje entendemos como música negra. A companhia foi também de importância crucial para a consagração dos gênios Marvin Gaye e Stevie Wonder nos anos 60. Na década seguinte, curiosamente, a rebeldia e a confiança de ambos inverteram os papéis: os dois romperam com a antiga receita de Berry Gordy Jr. (fundador da Motown), que insistia em priorizar os singles para as paradas de sucesso, e bateram o pé para criarem álbuns com conceito mais elaborado tanto na estética quanto na temática. O resultado são sequências inspiradas de cinco discos de cada um que hoje são cultuadas como as melhores fases de suas respectivas carreiras, obras que frequentemente são lembradas como mais influentes da música e um novo status para a própria gravadora (que evolui para um período de maior maturidade artística, sem perder a vocação para o sucesso). A playlist que acompanha este texto reúne 50 faixas de Gaye e Wonder lançadas entre 1971 e 1978 que simbolizam essa transformação no som dos artistas.

O álbum divisor de águas é “What’s Going On”, de 1971. Marvin Gaye insistiu que gravaria o trabalho com autonomia, enfrentou a resistência de Gordy e ameaçou romper com a Motown se as coisas não saíssem do jeito que ele havia imaginado. O artista então conseguiu largar os refrãos de apelo pop, as letras românticas, as durações máximas de 3 minutos para cada música e as dancinhas coreografadas para fazer um disco de protesto. Quando escutou o trabalho pela primeira vez, o chefão da Motown decretou: “é o pior disco que eu já ouvi na vida”. Pouco depois de seu lançamento, teve de se curvar ao bom desempenho de vendas (líder no quesito entre todos os títulos lançados pela gravadora). A longo prazo (e mais importante), viu o disco sobreviver e atravessar as décadas como um clássico insuspeito sempre presente nas listas especializadas como um dos maiores da história – ou seja, evoluiu de “o pior” a “o melhor”. Impactado com os horrores da Guerra do Vietnã e o crescente movimento pelos direitos civis, Gaye refletiu sobre as questões sociais e inovou no formato com músicas que se conectam entre si. Inspirado pela ousadia de Isaac Hayes em “Hot Buttered Soul” (Stax, 1969), também foi além nos arranjos de cordas, nas linhas de baixo de James Jamerson (da banda Funk Brothers) e no estilo de cantar. A faixa-título, “Mercy, Mercy, Mercy (Ecology)” e “Inner City Blues” são hinos da soul music e a influência de “What’s Going On” inspirou trabalhos lançados posteriormente no mesmo ano: “Shaft” (do mesmo Isaac Hayes) e “There’s a Riot Goin’ On” (Sly And Family Stone) são dois exemplos. Gaye, por sua vez, lançou mais quatro discos no embalo do novo status alcançado na Motown: “Trouble Man” (1972), “Let’s Get It On” (1973), “I Want You” (1976) e o duplo “Here My Dear” (1978). O comentário social, no entanto, se diluiu e o artista retomou a vocação latente de fazer músicas para embalar o romance nos três discos que encerram essa inspirada sequência.

Outro artista que se reinventou após “What’s Going On” foi Stevie Wonder. A partir de “Music of my Mind” (1972), o compositor e multi-instrumentista alcançou também um novo estágio com o uso criativo e autoral do recém-descoberto sintetizador – algo explícito principalmente nos riffs dos hits “Superstition” (1972) e “Higher Ground” (1973) – e letras que refletiam sobre as mesmas questões (política, racismo, desigualdade…) levantadas por Gaye. Wonder se inspirou no colega de gravadora também nas negociações. Ao completar 21 anos em 1971, ele teve acesso a todo dinheiro que havia ganhado até então da Motown e renegociou seu contrato. Conseguiu gravar com liberdade para enfileirar uma sequência que culmina em “Songs in the Key of Life” (1976) – sério candidato ao melhor álbum duplo da história, com um conjunto de canções de uma potência impressionante. Se Gaye iniciou sua série com uma obra-prima, pode-se dizer que Wonder gravou 4 álbuns que trilham o caminho até chegar no auge – muito embora ele próprio considere “Innervisions” (1973) seu melhor disco e “Talking Book” (1972) também apareça com força nesse páreo duro. No meio dessa estrada, ele sofreu um acidente de carro em 1973 e ficou seis meses em coma. “Fullfillingness First Finale” (1974) foi lançado após a tragédia e mostrou que a criatividade do músico não tinha se abalado em clássicos como “Boogie on Reggae Woman” (um flerte com a música jamaicana) ou na funkeada “You Haven’t Done Nothing”. Dois anos depois, a fartura criativa desaguou nas 21 canções de “Songs in the Key of Life” (escolhidas entre impressionantes 200 composições do período), que abordavam o amor (“Joy Inside My Tears”, “Summer Soft), a espiritualidade (“Have a Talk With God”, “Saturn”) e o engajamento (“Black Man”, “Village Ghetto Land”). Muitas se tornaram clássicas: “Pastime Paradise”, “Another Star”, “Sir Duke”, “I Wish”, “Isn’t She Lovely”… A abundância de participações especiais de jazzistas também ajuda a entender o nível de som e arranjos para um disco com potencial pop: Herbie Hancock, Dorothy Ashby, George Benson, Bobbi Humphrey, Ronnie Foster…

Marvin Gaye e Stevie Wonder ainda gravaram pela Tamla / Motown nos anos seguintes sem a mesma inspiração. Se hoje Berry Gordy Jr. pode planejar o aniversário de 90 anos (em novembro de 2019) com a certeza de que a gravadora deixou álbuns memoráveis pra música negra, muito disso se deve às obras destes dois artistas nos anos 70.

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