As peças do quebra-cabeça
Quatro discos lançados, nove músicos, nove anos de estrada, infinitas influências: “Quebra-Cabeça” é o nome do novo disco da banda paulistana Bixiga 70 e o título soa como uma síntese perfeita da amálgama que junta peças sonoras distintas pra construir algo novo. O som é instrumental, mas há uma mensagem. Em um mundo onde muros se erguem para separar sotaques e culturas, a música sempre atravessa, vai e volta pelos mares e o agora noneto parece extravasar essa ideia de captar referências e traduzir isso como uma identidade própria, mestiça, híbrida. Assim, o caleidoscópio projeta na mente do ouvinte as mais diversas paisagens sônicas: nordeste brasileiro, Colômbia, terreiros, Jamaica, Mississipi, África, Cuba, São Paulo, New Orleans, Índia e muito mais.
Há um elemento importante nesse trabalho: é o primeiro álbum da banda com um produtor convidado, Gustavo Lenza, que trabalha junto com os integrantes na construção dos arranjos. É uma presença crucial para uma proposta com tantas vozes, tantas cores, tantos ritmos. O som ficou mais arejado, a potência do palco parece que ganhou uma tradução melhor no estúdio e percebe-se uma inquietação ainda maior em explorar mais e mais timbres (de percussão, de teclados, de guitarras, de metais, tudo).
O título do álbum se inspira na arte da capa, obra de MZK – que trabalha com a banda desde o primeiro disco. “Eu já praticava esse lance de misturar faces. Até a primeira capa do Bixiga 70 também tem a ver com isso. Já tinha vontade de desenvolver essa mistura de quebra-cabeça. Em geral, eu divido o desenho em quatro partes e completo com rostos que não se encaixam”, explica MZK. “Outro lance é graças à liberdade total que a banda me dá pra usar meu trabalho pessoal nas capas”. Abaixo, ele mostra um exemplo de um trabalho anterior que já explorava o conceito de mistura de máscaras. E o som da banda, é uma inspiração? “Com certeza. Sendo instrumental, a mente viaja pois não há algo tão sólido pra se agarrar e tentar representar visualmente a música. Assim, a intensidade e os climas dos sons são guias meio abstratos, mas importantes.”
A capa inspirou também as fotos de divulgação, de José de Holanda, profissional com larga experiência em retratos de músicos brasileiros. “Propus que fizéssemos retratos individuais. Me ocorreu a ideia logo que tive conhecimento do nome do disco e do caminho que MZK construiu para criar a capa. Fez todo o sentido pensar em peças, cabeças”, observa o fotógrafo. “Fiz retratos individuais e no processo de pós, enquanto ouvia o disco, explorei a ideia formatando as imagens no que me remetia à conexão de peças.”
A faixa “Quebra-Cabeça” já ganhou clipe, divulgado na segunda-feira 16/07, com o dançarino Jimmy The Dancer como protagonista. É outro personagem fundamental, que já está nos placos também desde o princípio, em 2010, e ganhou uma música em sua homenagem no terceiro disco, “Bixiga 70 III”, de 2015 (a faixa “Di Dancer”). “Quando eu estou com eles no palco, é uma purificação, uma vibe. Eles comentam que sentem minha falta quando rolam shows fora de São Paulo e eu não posso ir. O clipe me deixou feliz, é importante pro meu currículo. Eu fui resgatado da rua, né?”, completa, lembrando do período que foi morador de rua.
O álbum será divulgado nas plataformas digitais nessa sexta (20/7) e o Bixiga 70 faz show de lançamento de quinta a sábado, no Sesc Pompeia (ingressos esgotados). A Radiola Urbana ouviu “Quebra-Cabeça” e convocou os 9 músicos da banda para comentar faixa-a-faixa do trabalho: o baterista Décio 7, o percussionista Rômulo Nardes, o guitarrista Cris Scabello, o guitarrista e tecladista Maurício Fleury, o baixista Marcelo Dworecki, o trombonista Douglas Antunes, o trompetista Daniel Gralha e os saxofonistas Daniel Nogueira e Cuca Ferreira. Juntamos as diferentes peças e o resultado você confere abaixo.
01 – QUEBRA-CABEÇA
A faixa-título, curiosamente (assim como a maioria das músicas desse disco), tinha outro nome até a gente mandar pra fábrica! Temos esse costume duvidoso de inventar um apelido quando a música começa a nascer, baseado em qualquer besteira (às vezes uma piada interna completamente sem graça). Ela se chamava “Santeria”, por causa da clave de cowbell, que é inspirada nesse ritmo cubano e que é superimportante na música. Conforme ela foi ganhando forma, outros elementos foram entrando e se tornou uma forte candidata a virar a música de trabalho. Daí a gente achou que não tinha tanta propriedade para usar esse nome, por respeito. Foi quando a gente viu a capa absurdamente linda que o MZK fez para o disco, então decidimos chamar tanto o disco como essa faixa de “Quebra-Cabeça”. (Cris Scabello)
02 – ILHA VIZINHA
Essa tem bastante a ver com coisas que a gente vinha ouvindo do Congo e do Cabo Verde, que tem essa levada de chimbal meio funaná – há quem discorde, o Gralha acha que não é muito funaná, mas eu acho que tem a ver, um funaná meio funk passando pelo Congo… (Maurício Fleury)
Como se Cabo Verde encontrasse o Brasil em pleno carnaval nas ruas de São Paulo. (Daniel Gralha)
Uma celebração à diversidade. (Daniel Nogueira)
O nome “Ilha Vizinha” é uma piada com o Rômulo, porque ele é muito viciado nas histórias dos ritmos no continente africano. (MF)
Ele sempre traz referências, histórias sobre os ritmos, os toques dos orixás… (CS)
E fala coisas do tipo: “essa música é uma variação do ritmo tal, não é bem o som daquele lugar, é como se fosse da cidade vizinha, da ilha vizinha”. É uma coisa que é, mas não é. É meio Cabo Verde, mas não é, é como se fosse a ilha vizinha. É uma música com bastante guitarra, a gente quis equilibrar o papel da guitarra com o dos metais. (MF)
O riff da guitarra, bem psicodélica, é uma clara influência do pessoal do Meridian Brothers, da Colômbia. O diálogo dela com os metais e a percussão deram uma cor bem diferente ao que a gente tá acostumado a fazer. Ela também já nasceu com a coreografia dos pulinhos, mas isso já é outra história. (CS)
03 – PEDRA DE RAIO
É uma música em homenagem ao orixá Xangô, deus da justiça e do trovão. (Rômulo Nardes)
Carinhosamente chamada de “Xangô” até os 45 do 2º tempo, é uma das minhas preferidas! (Gustavo Lenza)
Talvez uma das músicas mais bonitas que a gente já compôs. (CS)
Soa como um afro-samba de Angola (DG)
Gosto muito do clima que criamos com os reverbs de mola no começo, como um trovão. (GL)
A primeira entrada dos metais faz uma menção ao ápice da dança de Xangô, ao ritmo alujá, quando ele lança ao ar pedras de raio. (RN)
O lindo tema dos metais nos remete ao Moacir Santos, as guitarras ao oeste africano e a percussão em 6/8 é um toque de Xangô. (GL)
Trovoada de Xangô, Moacir Santos com guitarra de rock. (MF)
É uma música que não tem solo (poucas no disco tem) e os temas de metais e guitarras se alternam contando uma história bacana ao longo do som. A banda andou várias casas nessa! (GL)
04 – 4 CANTOS
Essa era uma que gastamos um tempinho na gravação da base, pois insisti que a levada reggae do começo deveria voltar no meio, derrubando um pouco a dinâmica da base no ápice, mas favorecendo a crescida no final. Os metaleiros (a turma dos sopros) deram uma chiada quando ouviu mas mudou a intenção pra encaixar no grooove da base e ficamos todos felizes no final. O fato de gravarmos a base antes dos metais proporcionou esse tipo de experiência também. (GL)
Um passeio pelas ladeiras de Olinda. (DN)
Essa música começa com um afoxé meio reggae e depois descamba para um groove pesado, completamente outra coisa. Mas, por incrível que pareça, o afoxé é uma grande inspiração nessa música. Do afoxé para os 4 Cantos de Olinda, foi só um pulo. Acho o solo de trompete matador… Fiz questão de deixar ela de 4ª faixa do disco. (CS)
05 – AREIA
Areia nasceu originalmente influenciada pela colaboração que fizemos com o Russo Passapusso, que participou de um show nosso, tocamos algumas músicas dele que piramos, e a “centelha” original dessa música acho que veio dessa influência. No final acabou se distanciando bastante, porque como praticamente todas as músicas desse disco a gente trabalhou por muitas horas e foi levando pra outros lugares. (Cuca Ferreira)
A mais brasuca (ou latina?) do disco. Meio brega, meio forró, meio dor de cotovelo. (CS)
Essa é pra dançar juntinho. Certamente a mais ‘melosa’ do disco. (DG)
Areia que gruda no pé, na hora do resfulengo da sanfona no forró (Douglas Antunes)
Canção de amor, sob o céu de Cartagena ou Campina Grande. (Marcelo Dworecki)
Claves colombianas, carnaval, São João. (MF)
De repente, vem uma sorongada, uma homenagem a Pedro Sorongo, a música vira uma marcha rancho de carnaval suingada. (CS)
Destaco os tambores que o Rômulo usa num momento em que ele sola. Quando fomos pra Índia a primeira vez, em 2016, ele ganhou de um percussionista um tambor chamado nagará que ele usou nessa faixa, junto com outros que ele mesmo construiu, numa levada que evoca a concepção do Pedro Sorongo Santos, nossa referência desde sempre. (CF)
Essa música ganhou letras, mas é segredo. (DG)
06 – LADEIRA
Essa nasceu “debaixo do barro do chão”, com groove intensamente brasileiro, e melodias bem de bandas de rua. Exploramos bastante as vozes, dividindo os sopros em sub-naipes de 2 instrumentos. (CF)
Bem carnavalesca, bem Bixiga 70, caixa rufada, percussão com ferro e couro pegando fogo, com direito a solo de cowbell, metaleira pesada e com melodias cantantes (outra faixa que já tem letra), guitarra meio Mali, meio fuzz, solo pesado de sax barítono, trombone gritando. Assim que a gente gosta. (CS)
Tem solo de cowbell! Eu nunca tinha visto isso até então… E solo de barítono, que começa evocando o baixo-tuba de fanfarras e charangas, cai pra emulação da sanfona, e encerra com uma melodia que entrega a melancolia que sempre paira por trás de tanta alegria. (CF)
07 – LEVANTE
Essa levou o apelido de “Medit” durante o processo de criação por proporcionar durante os ensaios um estado de meditação e paz, mas sempre carregada com uma certa tensão tão presente nos dias atuais. (Décio 7)
Talvez a faixa mais misteriosa do disco. (DG)
Uma oração, um pranto, uma reza. (CF)
A gente usa uma escala diferente nesse som, que passeia por dois ambientes bem densos. (DG)
Musicalmente, um novo caminho que ainda não havia sido explorado. Uma abordagem diferente dos álbuns anteriores. (D7)
Uma musica lenta, porém, uma das mais potentes que a gente já fez. (CF)
Nesta faixa, toquei percussão com as peças da bateria desmembrada, usando como referências de base os ritmos da (manifestação cultural) “moçambique de gunga” do interior do estado de Minas. Também usei o pandeirão tocado no bumba meu boi maranhense. Usei também uma melodia de cowbells e sinos e uma levada de guizos que remete aos tuaregues. A banda do Mali Tinariwen é uma das inspirações maiores. (D7)
Um chamado ao levante. (DG)
08 – PRIMEIRAMENTE
Primeiramente, fora Temer! Pois nunca é tarde! (GL)
Um grito das ruas. (DG)
Um grito preso na garganta. (CS)
Essa foi a 1ª de todas, que gravamos no meio de 2017, no calor do golpe. Uma levada pesada, um riff potente e aquele cowbell no começo que parece uma convocação para a batalha! Foi difícil chegar no “som” de batera que eles tiraram na pré-produção (uma imersão no sítio Estúdio Alvorada, do parceiro Gustavo “Lagarto” Mendes) mas acho que conseguimos uma dinâmica excelente! A música cresce muito sem afogar e os graves batem bonito! Palmas para o masterizador Felipe Tichauer, grande parceiro! (GL)
Uma resposta ao sentimento de insatisfação. (CS)
09 – TORRE
Guitarras cheias de poder. (DA)
Esse disco, entre outras coisa, se caracteriza por uma presença maior das guitarras, e essa música tem isso de forma bem clara. As guitarras dão o tom da conversa, puxam o trem, e a banda vem atrás empurrando todo mundo. (CF)
Um “tropical-progressivo” pra esquentar a pista. (DG)
Ode às orquestras de baile brasileiras, da Tabajara à Sossega Leão. (MD).
A parte B da música é mais ambiciosa em termos de arranjo e harmonia do que o Bixiga normalmente faz. Mas logo entra um solo de tenor rasgado que traz tudo de volta à normalidade! Aquele som acelerado do Bixiga com todo mundo espancando os instrumentos… (CF)
10 – CAMELO
Lembro que, depois de tocar no (festival de musica eletrônica) Dekmantel, o pessoal voltou superanimado, querendo fazer um som ‘mais reto’, loopado, minimal, “mais música eletrônica”, sem tanta mudança, sem tanto riff e tal. (CS)
Fizemos essa música inspirados nos festivais de música eletrônica pelos quais já passamos. Tocar assim é novidade pra nós! (MD)
Curti bastante a ideia de fazer um som nessa onda, já que sou fã de dub, achei que seria uma boa oportunidade para brincar com o reverb e o delay … (CS)
Tentamos soar como uma base sintética, mas “dubeamos” organicamente. (MD)
A cereja do bolo foi depois que a gente tocou num casamento na Índia (????), no final de 2017, quando entrou o Nagará (instrumento de percussão bastante usado no Rajastão) na segunda parte do som e deu todo o clima bollywoodiano. (CS)
Uma rave em Bollywood (MF)
“Day off” na Índia (DN)
Um salve pros nossos manos da banda holandesa Jungle By Night, que são mestres em soar sintéticos e orgânicos ao mesmo tempo. (MD)
11 – PORTAL
Essa música veio pronta. Douglas chegou no ensaio com tudo na cabeça. (MD)
Música para o amor! (DA)
O nome surgiu imediatamente assim como o “clima da canção”. (MD)
Meditativa, um portal para uma realidade paralela onde o amor é a regra e não a exceção. (DG)
Depois um especial de guitarra, um solo desconstruído do trompete e do trombone e um crescente da bateria e da percussão. (MD)
Música meditativa para transição dos astros (DN)
Já tocamos esse tema em vários países, foi um dos primeiros do novo disco a ser testado no palco. (MD)
Vai lá:
Bixiga 70 – lançamento do LP “Quebra-Cabeça”
Quando: 19, 20 e 27 de julho, às 21h30
Onde: Sesc Pompeia – R. Clélia, 93
Quanto: R$ 9,00 (comerciário), R$ 15,00 (meia), R$ 30,00 (inteira)
(ingressos esgotados)
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