Força estranha
Leia nossa entrevista com Gabriel Roth (aka Bosco Mann), baixista e produtora da banda the Dap-Kings, sobre o último disco da cantora norte-americana Sharon Jones. “Soul of a Woman” foi lançado em novembro de 2017, exatamente um ano após a morte da cantora, aos 60 anos, vítima de um câncer no pâncreas. O álbum está entre os melhores do ano passado e é mais um elemento de uma discografia sem deslizes
Não é apenas o último disco de Sharon Jones. “Soul of a Woman” é um dos melhores de 2017 e mais um elemento que faz da obra dessa cantora norte-americana um dos acontecimentos da música neste milênio. Desde que lançou seu primeiro álbum (“Dap Dippin’ With Sharon Jones and the Dap Kings”, de 2002), ela enfileirou uma sequência de mais seis trabalhos e esse conjunto resulta em uma rara discografia sempre em altíssimo nível. Mais: já não é exagero colocá-la no olimpo da soul music, entre os maiores. É claro que continua atrás de gigantes como James Brown e Aretha Franklin, mas é por ordem de chegada — estes e tantos outros artistas (como Curtis Mayfield, Al Green, Isaac Hayes, Marvin Gaye etc. etc. etc.) gravam desde os anos 60 e moldaram o gênero que Miss Jones mantém vivo e criativo cinco décadas depois.
Sua biografia mostra, inclusive, que ela chegou atrasada na história por falta de oportunidades e só conseguiu gravar aos 46 anos. Pior: partiu antes da hora e morreu aos 60, em 2016, vítima de um câncer no pâncreas. Esse curto período de carreira foi o suficiente pra deixar sua marcava definitiva. Além da obra gravada, a cantora passou como um furacão pelos palcos que pisou. Sua performance era de tirar o fôlego: como cantava, como dançava, que mistério era toda essa energia que transbordava de sua figura e contagiava todos ao seu redor — banda e público acompanhavam-na nessa experiência que sempre resultava em catarse.
“Soul of a Woman”, assim como os seus seis álbuns anteriores, foi lançado pela gravadora Daptone Records — que tem em seu catálogo inclui artistas de soul, funk e afrobeat como Charles Bradley, Antibalas, The Sugarman 3, The Menahan Street Band, Budos Band, entre outros. Sharon Jones sempre teve a companhia da banda The Dap-Kings, verdadeira trincheira de pesquisa de timbres e dinâmicas da soul music original. O baixista Gabriel Roth (aka Bosco Man) teve papel fundamental: é o compositor da maioria esmagadora das músicas gravadas pela cantora e o produtor de todos esses sete álbuns. A Radiola Urbana fez uma entrevista com ele por email sobre a gravação de “Soul of a Woman”. “Há uma certa vulnerabilidade no álbum e verdadeiros sentimos humanos que talvez incluam medo e tristeza, mas definitivamente não há fragilidade em sua voz”, diz ele, sobre o álbum ter sido gravado durante o tratamento de quimioterapia da cantora. Leia e ouça!
Imagino que havia vários sentimentos envolvidos com o lançamento de “Soul of a Woman”. Como você se sente agora em relação ao álbum?
Foi muito difícil concluir a mixagem depois da morte de Sharon. Ela era uma das minhas melhores amigas, era uma irmã. No entanto, me dá uma sensação de orgulho saber que conseguimos terminá-lo para ela e oferecer sua voz ao mundo uma última vez. Acho que esse é o seu melhor disco e estou muito orgulhoso.
É incrível ouvir o disco sabendo que foi gravado enquanto ela tratava um câncer. A voz dela soa intacta. Como foi a gravação dos vocais neste álbum em comparação com os anteriores? Houve alguma dificuldade maior?
Não. Foi do mesmo jeito de sempre. Se Sharon estivesse fraca por causa do câncer ou da quimioterapia, ela não ia ao estúdio. Ela só ia gravar quando estava forte e é isso que está no disco. Mesmo antes de ficar doente, ela sempre cantava cada nota como se aquele dia fosse seu último na terra. É por isso que se tornou uma super-heroína. O câncer não mudou isso. A cada dia ela cantava mais forte do que no dia anterior e assim foi até o fim. Há uma certa vulnerabilidade no álbum e verdadeiros sentimentos humanos que talvez incluam medo e tristeza, mas definitivamente não há fragilidade em sua voz. Ela era feita de algo diferente do que o resto de nós.
A gravação de “Call On God” é de 2007. Por que vocês decidiram incluir essa faixa no álbum?
Originalmente, a gente planejava gravar um disco de gospel, mas infelizmente Sharon não teve a oportunidade de finalizar esse projeto. Ela escreveu “Call On God” para o coral da igreja dela nos anos 70 e tivemos a felicidade de reunir o coral em estúdio para acompanhá-la uma última vez neste álbum. Eu acho que não havia como imaginar uma última música para Sharon – juntando sua banda com seu antigo coral e deixando ela nos guiar com suas próprias palavras. É uma música que significa muito pra gente.
Você é o compositor de duas faixas do disco, “Just Give Me Your Time” e “Girl (You Got To Forgive Him)”, ambas de teor mais romântico. Você acha que Sharon tinha um talento especial para canções de amor?
Não particularmente. “Girl” não é uma música de amor tradicional. Ela tinha um talento especial para cantar tudo que fazia sentido pra ela. Uma vez escrevi uma música sobre comer um bife, que era uma das coisas que ela mais gostava de fazer. Ela cantava essa música com a mesma intensidade que conhecemos.
A Daptone Records hoje ostenta um belo catálogo de discos e tudo isso começou com os discos da Sharon Jones. Qual foi a importância dela para o crescimento da gravadora?
Ela foi tudo. Sharon Jones & The Dap-Kings foi a peça central do nosso catálogo por uma década. Pagamos dívidas na estrada e quebramos barreiras para dar oportunidade que todos nossos artistas continuarão desfrutando nos próximos anos.
A soul music mudou com o surgimento de Sharon Jones. Você concorda com isso?
Não sei. Acho que a soul music sempre muda. Para mim, é apenas música honesta e feita com o coração. Todo tipo de música pode ter esse sentimento – gospel, country, afrobeat, samba, inclusive punk e hevy metal. Se as pessoas colocam o coração e os sentimentos humanos de forma natural, elas chegam lá. A soul music sempre esteve por aí. É apenas uma questão de quem e quando se sente enquanto está tocando.
Imagino que foram anos difíceis para a Daptone, com as mortes de Sharon Jones e Charles Bradley. Por outro lado, é possível sentir algo positivo diante do fato que a gravadora conseguiu projetar esses artistas antes de suas respectivas mortes?
É um ótimo sentimento saber que a Daptone pôde ajudar esses artistas a espalhar sua música e dar suporte para tantos músicos e suas respectivas famílias. Recentemente, além de Sharon e Charles, perdemos também Dan Klein (da banda Frightnrs) e Cliff Driver (da Naomi Shelton and the Gospel Queens). Tem sido muito dolorido para todos nós, mas tento me concentrar na sorte que tivemos em fazer parte destas histórias. Particularmente para mim, penso em como sou sortudo em passar tanto tempo no palco com Sharon Jones. Acho que nada se compara a isto.