Costurando rimas e a vida

#AgoraÉQueSãoElas: a jornalista Adriana Terra entrevista as integrantes do Santa Mala — trio de hip hop formado por irmãs bolivianas que vivem em São Paulo e são proprietárias de uma confecção no bairro Belém, na zona leste. “Tentamos influenciar as mulheres que dizem ‘eu não posso mais’. Você pode, sim!”, brada Jhenny, uma das irmãs. Leia a entrevista e conheça o som da Santa Mala! Fotos: Cristina de Branco / Visto Permanente. #foracunha #contraPL5069 #elasporelas

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No primeiro vídeo que assisti do Santa Mala, trio de irmãs MCs bolivianas que vive em São Paulo, elas entravam rimando pesado sobre base de “It’s a Man’s Man’s Man’s World”, contrapondo a frase de James Brown por meio de uma potente presença feminina. Achei lindo e forte, mas só fui entender a grandiosidade mesmo quando eu encontrei com elas na semana passada, em um bar ao lado do metrô Anhangabau. Minha ideia era saber um pouco mais sobre o grupo, sobre a relação delas com o rap e a vida como mulheres migrantes latino-americanas.

Junto às três Llanque — Jhenny, Pamela e Abigail, todas com idades entre 24 e 29 anos — estava Cristina de Branco, quem me apresentou ao Santa Mala. Luso-brasileira de 25 anos, Cristina faz parte do Visto Permanente, projeto que registra novas culturas imigrantes na capital paulista, e por meio dele conheceu as garotas neste ano. Elas se tornaram amigas e agora preparam juntas um documentário.

É impossível não se impressionar com a força das irmãs. Nascidas em La Paz, vivendo no Brasil há alguns bons anos, elas são modelistas e raperas. Enfrentaram muita coisa, nos palcos e no dia a dia, até chegar aqui. Da dificuldade extrema de grana à discriminação, na infância, por não terem um pai presente — e por uma delas cuidar, hoje também, sozinha da filha. Do não reconhecimento em batalhas de freestyle por serem mulheres ao esforço para ajudar a mãe doente em outro país. São várias as lutas e, logo na primeira pergunta que fiz, entendi porque a postura das MCs ao cantar tem tanto impacto: elas falam sobre coisas que conhecem muito bem. É um rap direto, cheio de influências da cultura latina callejera.

Após mais de uma década que Jhenny, a mais velha, pisou pela primeira vez no Brasil, as irmãs conseguiram ser donas da sua própria confecção, no bairro do Belém, zona leste de São Paulo, e enquanto trabalham nela aproveitam para fazer letras e ouvir um som.

O grupo faz parte também do Latam Esquad, coletivo com estúdio no Jardim Japão, zona norte da cidade, reunindo rappers bolivianos, peruanos e brasileiros. Junto a eles, integram o Kantupac (projeto apoiado pelo edital VAI da Prefeitura de São Paulo) e se apresentam neste sábado (28) no 9º Encontro Paulista de Hip Hop, no Memorial da América Latina — ótima oportunidade para vê-las de perto.

Antes disso, uma introdução. Com vocês, as incríveis irmãs Llanque:

Como foi a chegada ao Brasil?
Pamela: A questão econômica pra gente era difícil. Nossa mãe é mãe solteira e tinha quatro filhos para manter, ela vendia comida na rua e sofria muito, não tinha o apoio de ninguém. E Jhenny, como era a filha mais velha, decidiu ajudar a família vindo ao Brasil. Quando ela veio, durante um período não tínhamos o contato dela, ela desapareceu. Depois de um tempo, voltou a La Paz e levou a Abigail. Após dois anos eu vim pra cá com elas, porque minha mãe já havia me apoiado muito nos estudos e se sentia mal porque queria ter ajudado as outras filhas também. Ela me dizia: “me desculpe, filha, mas já não tenho mais forças pra te ajudar”. Então pensei em vir pra cá, trabalhar e juntar dinheiro pra entrar na universidade.

Nesse ano em que eu estava no Brasil minha mãe ficou doente, teve uma depressão. Quando eu já tinha juntado o dinheiro para os estudos, nos ligam dizendo que ela estava internada, quase perdendo a memória. Voltei em 2009, e como lá o hospital não é gratuito, gastamos todo o nosso dinheiro. Minha mãe ficou paralítica, sem falar, perdeu a memória. E ficamos por um ano na Bolívia sofrendo sem o apoio de ninguém, éramos apenas as quatro. O dinheiro foi gasto em medicamento, fisioterapia, neurologista, tivemos que voltar pra cá pra trabalhar de novo. Jhenny voltou para nos mandar dinheiro. Eu voltei também e, depois de um tempo, trouxemos nossa mãe, e creio que de tanto que pedimos ela se recuperou. O calor a ajudou, ela voltou a andar e agora vive com a gente. E é assim que viemos para o Brasil e que seguimos aqui.

Trabalhando sempre com confecção…
Jhenny: Sempre trabalhamos com tecido aqui. Na Bolívia apenas estudávamos e aos fins de semana ajudávamos nossa mãe com a comida. Eu havia trabalhado por pouco tempo como empregada doméstica. Uma parte dos meus tios estava envolvida com costura. Tenho um tio que vive aqui há uns 30 anos. Minha ideia era viver aqui só um ano e, veja, já são treze anos…

E o rap, quando veio?
Jhenny: Estávamos envolvidas desde meninas com o hip hop, entre todos nossos problemas e estudos, no colégio, nas ruas…

Abigail: Começamos a escrever nossa primeira música com 14, 15 anos, porque já queríamos rapear, víamos cantoras de outros países e ficávamos impressionadas, e então começamos a fazer rimas, a pensar, a criar. Escrevemos um som do nada e nos convidaram, porque antes não havia mulheres fazendo rap na Bolívia.

Pamela: Havia poucas mulheres. Às vezes nos diziam [em tom de desaprovação]: “ah, mulheres cantando!”. Nos discriminavam, mas a gente não ligava. Nos portávamos como homens e seguíamos, hahaha! Antigamente, quando eu fazia batalhas de freestyle, batalhava com homens em Cochabamba, em Santa Cruz de la Sierra. Eu sempre ganhava e a maioria das pessoas não gostava. Uma vez eu fiquei em primeiro lugar e não me deram o primeiro lugar, o meu primeiro lugar deram para um cara, não fui receber o prêmio nem nada. Umas pessoas que gostam do meu trabalho diziam: “mas ela ganhou!”.

Porque na Bolívia somos bem esperadas. Criamos um grupo chamado Hermandad Femina, fomos bem lá. Quando nos separamos, quando eu vim pra cá, sentimos a ausência da Hermandad Femina. E, com todos os problemas, ficamos paradas por um bom tempo. Decidimos voltar depois que minha mãe se recuperou e agora estamos com o Santa Mala.

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Vocês disseram que queriam fazer rap ao ouvir mulheres cantando. Quem eram elas?
Actitud Maria Marta [dupla da Argentina], Ariana Puello [MC da República Dominicana], Makiza [grupo chileno ao qual pertencia Ana Tijoux].

Vocês ouviam rap brasileiro nessa época também?
Pamela: Eu escutava um pouquinho de Sabotage, mas não o entendia muito porque não sabia português. Agora sei! Ouço Sabotage, Dina Di, Racionais. Adoro como a Lauren [Visão de Rua] canta. Há uma música dela que me dá uma força muito grande. Eu sou mãe solteira e é difícil criar uma criança sozinha, trabalhar. Por isso, há uma música [“Os Verdadeiros Tão Aqui”] que eu gosto que diz “quero te apoiar, não vou ficar pra trás, eu seguirei em frente”, e isso me incentiva muito.

Jhenny: Uma das músicas que fizemos foi inspirada na nossa sobrinha, filha de Pamela.

Pamela: Ela nasceu em 19 de dezembro, fizemos a música com esse nome por isso, baseada na realidade mesmo. Quando escrevemos, queremos contar o que vemos e vivemos.

Como vocês percebem a cena do hip hop no Brasil? Estavam falando do machismo em La Paz, a coisa da batalha. E no Brasil, como notam isso, as diferenças…?
Abigail:
Já tem bastante mulheres rappers, para mim é bom estar aqui fazendo rap. Há muita gente que me apoia e tem gente que não, mas isso me dá mais gana.

Pamela: Temos sido bem recebidas, há poucas pessoas que nos olham de cima a baixo.

Jhenny: A maioria gosta do som, porque é outro idioma e o mesmo gênero. Quando estamos no palco me sinto bem. Em alguns lugares te olham torto, mas não damos muita importância.

E a recepção de outras MCs?
Pamela:
Conhecemos Tábata Alves, BrisaFlow, ambas boas pessoas, bom rap. Também conhecemos outras que não me lembro o nome, recentemente conhecemos umas meninas que fazem reggae. É legal, às vezes quando conheço essas mulheres eu penso: “há mais delas, que bom!”.

Quando surgiu a ideia do documentário?
Cristina:
Eu as conheci pelo Visto Permanente, pelo Bryan [Rodriguez, do grupo PTZ e do Latam Esquad]. Estávamos conversando e ele me contou que havia no coletivo mulheres rappers bolivianas e eu “uau, temos que filmar isso já!”.

As conheci no estúdio deles e fiquei fascinada por seu trabalho. Era um momento em que eu estava ficando próxima de outras rappers latino-americanas, estava me aproximando da Ana Tijoux — por sermos filhas de exilados chilenos temos muita conexão como latino-americanas que querem falar sobre isso e como feministas. As meninas do Santa Mala surgiram neste momento em que eu estava me aproximando do rap e fomos nos conhecendo.

Até que chegou a um ponto em que eu lhes disse: “para mim, parece que neste momento da minha vida é importante fazer algo mais, não apenas vídeos de três, quatro minutos [como os do Visto Permanente]. A inspiração, o impacto e a força que sinto de vocês não deve estar apenas comigo. O mínimo que posso fazer é, se for filmar, fazer algo maior para que outras mulheres no continente se inspirem por vocês”. E como já éramos amigas foi muito natural, trocamos muitas ideias e o filme eu já não sinto que é dirigido só por mim: somos as quatro, cada uma propondo uma coisa.

Vamos filmar até março do ano que vem, porque vamos com elas para a Bolívia antes, e a partir de março será a edição. Então penso que o filme vai estrear em junho, julho. Estamos filmando apenas eu e Miguel [Dores, também integrante do Visto Permanente e companheiro de Cristina] porque já temos o equipamento e queremos que o filme seja divulgado de maneira bem ampla, é isso que nos interessa. Não preciso de uma super produtora por trás, mas que façamos uma boa divulgação alternativa — e, claro, se entrar em festivais e na televisão será super bom. Mas agora, o que eu senti e o que conversei com elas, é que não faz sentido esperar mil anos por editais porque elas estão vivendo essa fase agora. Se esperamos dois anos eu já não sei onde vamos estar.

Já filmamos o início, começou mais pelo tema da costura, depois vamos pra vida delas e cada vez mais o hip hop no meio disso.

Hip hop também é costura, então…
Cristina:
Total, elas rimam com as tesouras!

Abigail: Trabalhamos ouvindo música.

Vocês trabalham todas juntas?
Sim.

Cristina: Todas trabalham juntas na confecção e são autônomas. São patroas delas mesmas e isso é muito importante, porque elas não apenas criam sua arte, mas seu negócio também.

Jhenny: Já não é como antes, em que mandavam em mim. Agora mandamos em nós mesmas. A Pamela, que é mãe solteira, não precisa de um marido para dinheiro, apoio, e ela é mais forte porque luta por sua filha para seguir adiante. Tentamos influenciar as mulheres que dizem “eu não posso mais”. Você pode, sim!

Abigail: A intenção ao fazer rap é essa. Porque várias mulheres que não conhecíamos se aproximaram da gente falando sobre como as ajudamos com músicas sobre auto-estima, garra, a música da “niña linda” [“19 de Deciembre”]. Amigas que queriam cair na bebida, que não tinham força [para cuidar dos filhos sozinhas] e que escutando a música conseguiram seguir lutando. Não esperava isso nunca. Fazia rap porque escrevia aquilo que me saía. Não tenho que colocar nas letras o que não sou, tenho que colocar o que sou e o que vejo, não posso fazer nada que não seja natural. Aí que me dei conta que é muito o que estamos fazendo.

Pamela: Como eu vivi esta realidade, sei que é muito difícil. Por isso, como a Abigail disse, há muitas mulheres a quem essa música ajudou. Tem uma parte de “19 de Deciembre” que diz “nunca se envergonhe por não ter pai, levante a cabeça, como ensinou sua mãe, mantenha sempre o olhar adiante e respeite a quem te respeita”.

Abigail: É que quando a gente era criança já nos criticaram.

Jhenny: Sempre éramos criticadas, “não tem pai”, “estão mal vestidas”…

Pamela: Claro, nossa mãe nos vestia com roupas velhas, mas nossas roupas estavam sempre limpas. Não tínhamos luxos, nossos brinquedos eram pedras, tampinhas. Não conhecíamos televisão. Foi Jhenny que chegou com uma televisão na Bolívia. Faz uns oito anos que eu conheço uma televisão!

Cristina: É bem interessante porque a avó e mãe delas são de Lago Titicaca. Então a mãe já migrou uma vez, de Lago Titicaca a La Paz. E elas já são de La Paz. E depois elas migraram de La Paz a São Paulo, e a mãe veio junto, em sua segunda migração. E a filha [de Pamela] já nasceu aqui. É bem bonito como se vai costurando a vida.

Pamela: Sim… Bom, assim que era antigamente. A infância não foi fácil. Algumas vezes eu cheguei a odiar meu pai. Porque eu via minha mãe sofrendo demais sozinha, ela sofreu muito. Escrevi uma música quando ela estava quase morrendo e até agora me recordo como era. Às vezes não tenho palavras pro meu pai, porque até agora me dói o que ele fez. É por isso que nunca nos afastamos, sempre crescemos juntas. E se sofremos, sofremos as três. E esperamos seguir juntas, a música nos une mais.

Latam Esquad from Visto Permanente on Vimeo.

E quando o Latam Esquad entra na história de vocês?
Abigail:
Eu conheci eles primeiro. Passava pela rua Coimbra [no Brás, onde há uma importante feira boliviana] e então me chamaram pra fazer uma letra de 30 segundos pra entrar na música “Una Sola Raza”, porque eles já tinham um pequeno estúdio. Eu fui lá no dia seguinte, cada um pegou sua letra e juntamos, fizemos um vídeo. Aí passamos a nos ver aos fins de semana e a nos conhecer melhor. Juntando vários rappers bolivianos e brasileiros pensamos “somos muitos” e resolvemos formar um coletivo. Agora faz quase um ano que nos conhecemos e surgiram muitas oportunidades com eles.

Este ano foi super bom pra gente e ano que vem vai ser muito mais. Estamos fazendo um álbum do Latam Esquad e um demo só do Santa Mala que queremos apresentar na Bolívia junto ao filme. Há muitas coisas que queremos fazer.

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