Ouça o meu grito!
#AgoraÉqueSãoElas: a jornalista Mayra Maldjian entrevista a cantora Tássia Reis, revelação da música negra brasileira, sobre a mulher no rap, o feminismo negro e o racismo no Brasil. “As pessoas precisam entender os privilégios que elas têm dentro da sociedade”, brada a artista. “Se elas entenderem isso, vão entender todas as outras coisas. Vão entender o quanto eu, mulher negra, sofro, o quanto o homem negro sofre”. #foracunha #contrapl5069 #elasporelas
“Ouça o meu grito invadindo o seu ouvido, tomando a sua casa e tocando lá no seu radinho”. Os versos iniciais de “Ouça-me”, canção mais recente de Tássia Reis, uma colaboração com o produtor Arthur Joly, anunciam a pegada dos próximos trabalhos da cantora paulista de 26 anos, uma das mais gratas revelações do rap nacional.
Isso porque, desde que lançou o elogiado EP de estreia, em setembro de 2014, ela vem se tornando uma voz potente na luta do feminismo negro e da desconstrução do racismo, questões emergenciais no país. “A ignorância é um problema urgente. É preciso tirar o véu da cara e enfrentar, reconhecer o seu papel nisso também”, brada.
Das entrelinhas para o soco no peito, a cantora nascida e criada na periferia de Jacareí, no Vale do Paraíba, deve endurecer o discurso nas letras que estão por vir, mas sem perder a sua doçura, sua marca característica. Com riso fácil e contagiante, Tássia exerce a consciência negra todos os dias, vivendo a vida de punho erguido. A história dela você precisa conhecer.
A dança foi o seu primeiro envolvimento com o hip hop. Como foi que tudo aconteceu?
Tudo começou numa oficina de dança na minha cidade, em Jacareí. As aulas aconteciam num espaço chamado Casa da Juventude, da prefeitura, onde rolavam muitos eventos que contemplavam os quatro, ou melhor, os cinco elementos do hip hop. Lá no Vale a gente sempre prezou muito pelo quinto elemento, que é o conhecimento. Então também tinha filmes e livros, que abordavam desde o break até o movimento negro pelos direitos civis. O Betinho, que é uma figura importante da cultura, tinha um acervo incrível e colava nesses eventos. E eu fui gostando daquilo, me encantei. Quando vi já estava apaixonada. Eu tinha uns 14 anos. Comecei a me aprofundar nas pesquisas musicais, porque no primeiro momento a minha referência era superficial, era época daquele DVD Black Total, sabe?
Mas antes de começar a dançar você já ouvia rap?
Eu ouvia rap nacional, não ouvia muito o gringo. Meu irmão ouvia [o programa de rádio] “Espaço Rap” em casa, Racionais MC’s, que era unanimidade. Ele tinha pencas de CDs, mas os que eu gostava mais eram do Sabotage, do RZO e do Expressão Ativa. O ruim é que ele ligava o som sete da manhã e ninguém queria ouvir rap aquela hora. Várias vezes eu acordava ouvindo Facção Central, ficava até com um pouco de raiva. Depois de um tempo, ele me pegou ouvindo os CDs dele sozinha. Quando entrei para a dança que eu fui conhecer mais a black music como um todo, o rap gringo.
E como foi esse caminho da dança para a música?
Eu sempre gostei de escrever. Dava graças a Deus quando a professora passava redação. Eu adorava, já quis até ser jornalista. Só que a escola era um lugar muito cruel para uma criança negra. Eu ficava meio angustiada com algumas coisas, umas brincadeiras. Apesar de eu ser combativa, de não deixar barato para ninguém, eu era insegura. Antes eu dizia que era tímida, mas eu nunca fui tímida, eu era insegura mesmo. E aí eu comecei a escrever para aliviar aquela tensão, escrevia uns poemas meio tristes. Depois de um tempo passei a escrever não só na angústia, mas na alegria. Então, entrei numa oficina de redação dentro daquele mesmo projeto onde comecei a dançar –a Casa da Juventude, que também evoluiu, se transformou no Centro da Juventude, mudou de lugar, ampliou as oficinas.
No dia do aniversário da minha professora, eu queria dar um presente para ela, mas não tinha grana, aquela coisa. Aí eu dei umas três folhas de poesia para ela. Não lembro se ela chorou, mas ficou emocionada. Na aula seguinte, ela chegou em mim e falou: “Olha, não sei se alguém já falou isso para você, mas isso que você escreve é música. Tem ritmo aqui”. Achei que ela estava viajando, que não tinha nada a ver. E ela insistiu: “Meu namorado compõe, ele leu comigo e acha que é música também.” Guardei aquela informação. O tempo passou, não terminei o curso. Anos depois, em 2009, mais ou menos, eu falei para uma amiga que dançava e trabalhava comigo também: “eu vou fazer uma música, vamos fazer?” Ela topou, mas não me levou muito a sério. Olhando para trás, eu também acharia difícil acreditar. Eu acordei com vontade de fazer uma música e no outro dia cheguei com uma no serviço, com melodia, com tudo. Mostrei para ela e ela perguntou de quem era, como quem diz “não foi você que fez”. Era a “Agora que Eu Quero Ver”, a faixa cinco do disco. Eu tinha uns 18, 19 anos na época. Achei bem legal aquela história de fazer música.
Voltando um pouco para o que você falou sobre a época de escola, que era cruel para uma criança negra. O que acontecia?
As pessoas chamam de bullying o que eu chamo de racismo. Quando iam xingar uma menina branca, falavam “ah, sua feiosa, sua magrela”. Quando chegavam na preta era “sua preta, fedida, cabelo ruim”. Isso não é xingamento, tem outro tipo de nome! E tem a ver com criação, estrutura, Brasil colônia, é muita coisa. Sem contar que eu nunca era a mais bonita da escola, nunca era a noivinha da festa junina. Popular eu até era, porque era extrovertida e jogava vôlei (risos). A escola repete muito os estereótipos da vida adulta.
Você levava essas questões para casa?
Não, a gente nem pensava nessas questões, não tinha noção da dimensão delas. As coisas não eram como hoje, tão explícitas, não tinha diálogo em casa sobre isso. Meu pai sempre falava: “Filha, você é maravilhosa, você se parece comigo! Você é incrível, você é bonita”. Todo um trabalho ao contrário. E eu sempre fui meio artista, gostava de um espelho, mas foi um choque de realidade [chegar na escola e ouvir tudo aquilo]. Não lembro de falar para minha mãe que fui xingada, que me falaram isso ou aquilo. Você está na escola, sabe, já quer resolver seus problemas sozinho.
Existiam outros negros na sala de aula?
Sim, eu estudei em escola pública. Fiz um ano só em escola particular, mas não lembro muito bem, foi a primeira série. O pré, eu adorava, mas eu era muito alta, era bem diferente, e era a mais nova. Entrei adiantada na escola, com cinco anos eu já sabia ler. Abria o jornal nos quadrinhos enquanto meu pai lia as notícias.
Quando você era adolescente, você se sentia representada por alguma celebridade?
Foi quando eu encontrei o hip hop que eu me senti mais representada. Antes disso, não me lembro, eu era muito novinha. Tinha a Débora Brasil, do É o Tchan, mas ela ficou pouco tempo no grupo. Ela era linda. Também tinha a Glória Maria, que era maravilhosa, mas era mais velha. Ah, lembro da Pata, personagem da [novela] Chiquititas, e as Spice Girls — eu era a Mel B quando a gente fazia cover entre amigas. Quando me envolvi no hip hop comecei a me identificar mais como negra – tinha gente de cabelo crespo, de várias texturas diferentes. Nas minhas pesquisas também encontrei a Lauryn Hill e foi tipo “uau”, uma explosão.
Eu lembro que no ano que eu comecei a dançar, a gente ia para casa de um amigo. Ele tinha internet e gravava uns CDs para mim. Lembro que tinha Destiny’s Child, Lauryn Hill, Erykah Badu, que era mais underground. Do rap nacional tinha a Negra Li. Eu ouvia o CD do RZO, que era do meu irmão, e cantava a parte dela. Quando saiu o disco dela com o Helião, eu fiquei viciada. Aquilo foi escola para mim enquanto música também, porque era muito melódico. Eu sei o disco inteiro! Um amigo meu tinha o original e eu lembro de deitar no sofá com o encarte e ficar acompanhando as letras.
E você foi ter internet quando?
Nossa, demorou. Fui ter internet quando eu estava em São Paulo, lá por 2011 ou 2012. Na minha casa em Jacareí, acho que botamos, valendo mesmo, em 2012. Agora tenho computador, tablet, celular. Faz toda a diferença para as minhas pesquisas, para gerenciar as minhas redes sociais.
O machismo no hip hop já era assunto nas rodas de mulheres que faziam parte do movimento antes mesmo de o feminismo tomar essa proporção toda. No início dos 2000, por exemplo, ainda era comum ver as meninas com um visual mais masculino, como se fosse um dress code para ser aceita ali. Era até comum ouvir dos caras frases como “da hora, a mina rima que nem homem”. Como foi sua experiência com isso até agora?
Na dança tinha mais essa questão do visual, porque foi quando eu comecei a acompanhar a cena, em 2003, mais ou menos. Mas era diferente, a gente queria usar as roupas dos clipes e os figurinos eram bastante masculinizados. As meninas usavam top, mas eu nunca tive barriga para usar um, ou camisetão. Eu participei de grupos em que eu tinha liberdade de fazer o meu figurino, mas sempre usava aquela calça larga porque para dançar era maravilhoso. No YouTube tem um vídeo meu que estou dançando com uma bermuda e uma camiseta da Drump rosa. Parece um cara, mas eu estava amarradona. Foi um amigo que me deu aquela camiseta, eu queria muito. Quando eu comecei a fazer rap, eu já entrei na safra que imprimia sua própria personalidade no conceito visual. Meninas já não eram meninos.
Essa questão do visual não pegou tanto pra mim, mas é claro que o machismo está gritando aí há anos no hip hop. São muitas coisas, eu digo que existem o escancarado e as subjetividades do machismo. Por exemplo, a maioria ou a totalidade dos artistas nos eventos ser homem, os caras só chamarem a gente no 8 de março ou fazerem um evento só de mulheres para um dia na vida dizer que não são machistas —“Mas eu não sou machista, fiz aquele evento lá em 1993!”. Quando te chamam para fazer musica só te dão o refrão, sabe? Não te dão a possibilidade do protagonismo.
As pessoas me conheceram pelos refrões, mas eu comecei fazendo letra. E aí para mostrar para os meus amigos eu cantava, eles ouviam minha voz e diziam que era bonita. Foi aí que eu gravei meu primeiro refrão —na verdade era um e viraram três– com o AXL. Depois veio o Ralph, conheci um monte de gente no Vale. Depois comecei a fazer em São Paulo.
Fazer refrão não é uma coisa ruim, não é isso. É maneiro, sintetiza a música, é uma responsabilidade. Mas eu posso segurar responsabilidades maiores. Fiz pencas de refrões, mas uma hora me dei conta disso… Até falo [na faixa] “No Seu Radinho” que “posso ser mais que refrão, posso ser canção inteira”. E aí fui lá e fiz um EP inteiro.
É muito louco porque todos os dias a gente vai identificando outras coisas do machismo. E não é coisa da nossa cabeça, é coisa do sistema, do patriarcado, do capitalismo.
Como o racismo é discutido no rap? Eu acompanhei um debate no seu Facebook há algumas semanas em que uma garota branca, que dizia fazer parte da cena hip hop, ficou ofendida por você ter dito que “se você é branco, com certeza você é racista” e retrucou dizendo que você é que é racista. Como você lida com esse papo de racismo reverso?
As pessoas precisam entender os privilégios que elas têm dentro da sociedade. Se elas entenderem isso, vão entender todas as outras coisas. Vão entender o quanto eu, mulher negra, sofro, o quanto o homem negro sofre. A mulher branca sofre, mas bem menos do que esses que eu citei antes. O homem branco, esse está lá em cima surfando em cima de tudo. E não é tirar mérito de ninguém, muitas pessoas vêm dizer que ralaram muito. Mas nós estamos ralando um monte para tentar ralar no rap. Muita gente não tem nem esse “luxo” de conseguir trabalhar com isso. Porque é muito difícil sobreviver de cultura no Brasil, não só de hip hop. A gente vai inventando mecanismos para isso, de forma independente, porque não tem alternativa.
O que eu sinto é que os caras não escutam o que nós mulheres têm a dizer, principalmente nós mulheres negras. Quando a gente questiona algo, somos tratadas como raivosas, acham que estamos querendo chamar a atenção, e não dão o nosso devido valor, não nos dão o respeito. Acabei de ler um texto da Stephanie Ribeiro [um dos ícones do feminismo negro], na Folha, em que ela cita um trecho do discurso da ex-escrava Sojourner Truth na Convenção do Direito das Mulheres em Ohio, em 1851. Essa mulher negra questionou por que os homens nunca a ajudavam a subir numa carruagem como faziam com outras mulheres: “E não sou uma mulher?”. E a pergunta é essa: eu não sou uma mulher? Tem também o feminismo branco, que não compreende… Então a gente fica mediando ali, tentando desconstruir essa parada para ter voz. O que a gente tem feito é reunir mulheres negras no poder e outras mulheres que estão na sintonia para tentar desconstruir isso. Porque há muito tempo a gente não é concorrente, coisa que o machismo impõe isso para a gente, então precisamos nos unir para realizar coisas maiores e deixar a cena [hip hop] sólida.
E quando você se identificou como feminista?
Eu tive uma crew de dança só de meninas e a gente causava. Eu brinco que eu já era feminista e não sabia. Eu não sabia o que era. Hoje em dia eu tenho estudado bastante, tem muito material por aí. Eu digo que sou feminista negra interseccional, porque os recortes do feminismo no mundo não nos contemplam, apesar de sofrermos da pior maneira possível. A gente fica refletindo: por que para fulana é mais fácil e para mim não é? E A internet possibilitou as coisas chegarem mais fácil até a gente.
Pode parecer raso, mas quando começaram a aparecer os vídeos da [escritora nigeriana] Chimamanda [Ngozi Adichie] na internet, ela me justificou várias coisas. E ela, uma mulher negra, africana, escritora, premiada, maravilhosa, falava de uma maneira que eu entendia. Eu já tinha lido sobre feminismo, mas aquilo passou voando pela minha cabeça. Quando você tem uma referência, é muito mais fácil identificar a problemática. Então quando eu dei de frente com essas informações, eu já estava num crescente de olhar para isso e observar atitudes de outras mulheres, principalmente na cultura e na música. E aí eu comecei a buscar mais e achei mulheres como Stephanie Ribeiro, Djamila Ribeiro, Gisele dos Anjos, que são militantes e fazem o recorte racial e de gênero.
A gente vai estudando a teoria, mas ao mesmo tempo a prática já está toda com a gente. Você vê como o namorado da sua irmã, da sua amiga é um idiota ou até o seu próprio boy já te depreciou de alguma maneira. Aí fui lá atrás e me dei conta de que a escola era uma merda. Só consegui deixar o meu cabelo solto quando eu saí da escola. Apesar de não ter usado ele liso, eu fazia algum relaxamento. E mesmo assim não usava ele solto na escola. Quando eu saí da escola minha vida mudou. Eu me senti livre, de alguma maneira, porque não tinha a cobrança de ter que ser bonita para aqueles caras.
Eu nunca tive namorado na escola. Das poucas vezes que alguns boys chegavam em mim eu não acreditava, porque a gente fica tão tomada por aquela insegurança… E eu achava que eles estavam zoando com a minha cara, morria de medo de ser humilhada publicamente.
A solidão da mulher negra…
Quando a gente traz essa realidade à tona, muitas pessoas, muitos homens não entendem. Porque somos mulheres e negras, então eles acham que estamos mandando na vida deles, dizendo com quem eles têm que se relacionar. Não sou eu que mando, é o sistema quem manda. Existem estatísticas, informações que comprovam isso. E mesmo se não existissem, eu tenho as minhas. Tenho tias negras, minha irmã é negra, amigas negras, e as coisas se repetem, é um ciclo. Não é possível que essas mulheres não mereçam ser felizes.
Tem sempre aquela tensão no relacionamento. A gente nunca é apresentada para a família. Existem as famílias negras que se acham brancas e as que querem clarear a família. Na verdade, no Brasil, a imigração começou por causa disso. Queriam clarear o Brasil porque o país estava “muito feio”, “muito negro”. Na TV, a mulher bonita é a mulher branca, com aquele padrão de beleza eurocêntrico que não contempla o Brasil de jeito nenhum. Se vocês perguntarem para qualquer cara qual mulher de revista eles desejaram alguma vez na vida, com certeza a resposta vai ser uma branca. Na escola, a primeira paixão com certeza foi uma menina branca. O sistema está trabalhando nisso há muito tempo. Quando a gente questiona e joga isso na roda para os homens, a gente é a raivosa que não consegue homem.
Eu sinto muita mágoa de ver que o sistema maltrata a gente de diferentes formas e as pessoas não conseguem entender. Mas fico um pouco esperançosa por essas discussões virem à tona agora. Mesmo que o espaço seja mínimo ainda, podemos falar com outras mulheres negras, fazer com que elas se identifiquem e deixem de pensar que o problema são elas. Muitas se questionam “será que é meu cabelo, será que é meu nariz?”. Aí você começa a querer mudar quem você é em função de um padrão. E não tem nada a ver, porque a gente pode mudar o nariz, pode mudar o cabelo, mas vamos continuar negras.
Você disse em alguma entrevista que foi perseguida nas lojas Americanas e fez uma reflexão sobre isso: a questão não era o seu cabelo, era a sua pele. Não adiantava raspar o cabelo, porque aquilo ia continuar acontecendo.
E eu fui careca por dois anos. Eu queria comprar unhas postiças e entrei nas lojas Americanas da minha cidade, que eu frequentei a vida inteira. Eu já sabia onde ficava a seção, entrei direto, não tinha a unha e eu fui embora. Eu saí, não apitou. Outras pessoas saíram do outro lado da loja, 30 segundos depois de mim, e apitou. O segurança veio atrás de mim, me fez parar no meio do shopping, e ficou insistindo que apitou comigo. Eu expliquei que se tivesse sido comigo eu teria parado, porque eu conheço o procedimento, já trabalhei em loja. Mesmo assim, ele pediu para olhar minha bolsa. Eu falei: “Então, abre você”. Ele: “Eu não posso abrir, você vai ter que abrir a sua bolsa”. Eu me senti muito humilhada naquele momento.
Eu poderia ter chamado a polícia, eu poderia não ter aberto a bolsa. Mas eu queria tanto provar que eu estava falando a verdade, que eu abri a bolsa e comecei a tirar sutiã, salto alto. “Olha, eu estava num show, em Belo Horizonte, estou voltando agora, vim comprar unha postiça porque amanhã vou gravar um clipe.” E aí ele viu que não tinha nada, eu estava com meu cachê, perguntei se ele queria ver. Ele simplesmente foi embora sem falar nada, nem pedir desculpas. Fiquei mal, comecei a chorar no meio do shopping. Por uma obra divina, uma prima minha apareceu e eu fui embora com ela arrasada.
E isso já aconteceu outras vezes na minha vida, é recorrente. A gente fica até meio cabreiro de entrar num lugar chique e ser tratada mal. Outro dia fui comprar um carregador na loja da Apple com uma amiga negra também. Quando eu entrei, toda ressabiada, o menino falou: “Oi, Tássia!”. Dei graças a Deus! Eu até ri, mas é uma merda você ter de ser um artista para ser bem tratado numa loja. Ser humano não é o bastante.
Eu não entro nas lojas Americanas da minha cidade faz dois anos, e não quero mais entrar lá. Foi emblemático. Me falaram para processar, mas a gravação de shopping não tem som. Eu poderia ter tentado de qualquer maneira, mas na hora eu recuei, eu dei para trás. Porque a gente fica tão traumatizado de mexer naquilo…
É um como sofrer assédio.
É que nem assédio. Eu sofri assédios leves. Leves, não, porque para o nosso psicológico é tenso, mas nunca fui estuprada. Lembro de estar em uma festa e passarem a mão em mim. Eu queria matar a pessoa. Quando eu era adolescente, eu era mais explosiva. Meus amigos me seguravam e não deixavam eu ir para cima do desgraçado. Depois de um tempão, aconteceu comigo de novo. Foi este ano. Eu fiquei em choque, não fiz nada, não postei no Facebook. Só perguntei para o cara se ele tinha passado a mão na minha bunda. Ele respondeu “não” e saiu. Fiquei passada, fui embora da festa, acabou.
Quando eu saí da festa, encontrei uma menina muito bêbada lá fora. Ela caiu na minha frente e estava de saia, fiquei morrendo de medo de alguém se aproveitar dela. Eu a segurei, perguntei onde morava, acabei entrando num táxi e a deixei na casa dela antes de ir para a minha. Aí eu acabei me entretendo com isso, mas eu fiquei tão mal. Era um cara do rap ainda por cima. Mas pode deixar que o dele está guardado. E eu, que sou mega empoderada, demorei uns cinco dias para falar com a minha amiga sobre isso. Fiquei em choque, você sente vergonha, você fica com nojo.
A gente está exposta a coisas muito ridículas, humilhantes, por isso temos que ser mais combativas mesmo. Por isso que nas minhas músicas eu tenho sido mais [combativa], para levar essa mensagem mais longe também.
Faz um ano que você lançou o seu primeiro EP e recentemente saiu uma música nova, “Ouça-me”, que vem nessa pegada mais combativa. Você vem escrevendo letras mais diretas influenciadas pelo feminismo, pelas questões raciais?
Acredito que no meu EP as coisas estejam mais subjetivas mesmo, mas elas estão ali. É para quem quer enxergar, na verdade. É um jeito poético meu de dizer as coisas, mas também entendo que as coisas precisam ser mais objetivas, respeitando também a minha liberdade criativa. [O feminismo] influencia a minha vida, e a minha música é a minha vida, então não tem como deslinkar uma coisa da outra. A própria “Ouça-me” é mais densa. Respeitei o que o beat estava me pedindo e o grito que estava saindo do meu peito, que é isso de querer ser ouvida, compreendida, de ser aceita como mulher na sociedade, como um ser humano que tem direitos. É a busca. São micro revoluções. E eu faço parte delas desde que eu decidi mandar o sistema se foder e montar a minha carreira, sendo que tudo dizia “não”. Eu não tinha grana, não tinha investimento, não tinha estrutura, não tinha conhecimento teórico de música. E ainda era mulher, negra e periférica.
E você ainda estudou design de moda, não é?
Sim, durou dois anos e meio, foi o período em que morei em São Paulo pela primeira vez, de 2010 a 2012. Eu não entrei no mercado de trabalho, porque é um mercado racista. Tem um padrão de beleza… Eu fiz algumas entrevistas. Para algumas eu conseguia ser chamada, porque eu era estilosa, exótica. Tenho pavor da palavra exótica. Eu já estava fazendo rap e minha intuição falou para eu ir para música. Voltei para Jacareí e fiquei de 2012 até o começo deste ano.
[Enquanto fazíamos uma pausa para comer, fomos interrompidas por um senhor branco. Ele se aproximou da nossa mesa e começou a contar sobre uma palestra em que ouviu uma personalidade negra dizer que não conheceu o racismo até sair da África. Durante a abordagem, olhávamos atônitas para ele sem dizer nada].
O que foi isso?
Eu estou preparada para esse tipo de coisa, mas fico pensando se ele chega falando isso para um negro que não se entende como negro.
A sociedade brasileira desde a sua construção é racista, porque as mulheres de pele mais escura eram consideradas horríveis, feias. E elas foram clareando, clareando, clareando as suas famílias para que os filhos pudessem trabalhar dentro das casas, porque elas não podiam. Inclusive essa é a origem da palavra mulato, que é horrível, não usem! A sociedade diz para você que você tem de ser branco, seu nariz tem de ser fino, sua boca tem de ser pequena. Você olha para o espelho e não vê essa realidade. Você tenta se adequar de alguma forma, alisa o cabelo, tenta afinar o nariz. E aí, quando você anda na rua, as pessoas, na tentativa de qualificar de alguma maneira, te chamam de morena. Então você não é reconhecido como negro pela sociedade, porque o negro não tem representação. Logo, não existe. Por isso que existe o mito do racismo no Brasil, porque o negro não existe em nossa sociedade. Somos todos morenos, então? Aí fica difícil a gente conseguir constituir uma identidade sendo que toda a história que é contada sobre nós é mentirosa, coloca os negros como algozes, como pessoas que vieram voluntariamente para o Brasil, como imigrantes. Oi? Nós fomos sequestrados.
A identidade não funciona. Não nos contam como era a nossa vida antes de a gente vir para cá e não contam como é depois. Todas as nossas lutas e revoluções não são reconhecidas, também não reconhecem nossos autores, advogados, médicos, pessoas influentes negras. Quem vai querer ser negro? Quem não tem um pouco de consciência na família, na base, é levado pelo sistema, porque ele corrompe todos os dias. Então a nossa luta é muito por identidade, para que a gente possa se auto-afirmar como negro na sociedade e buscar os nossos direitos enquanto seres humanos. A gente precisa se reconhecer negro para se unir. Somos a maioria da população, e a parte que mais sofre, que mais morre, que tem menos grana. O genocídio da juventude negra é fato: 77% dos jovens que morrem no país são negros. É assustador, emergencial. A ignorância é um problema urgente. É preciso tirar o véu da cara e enfrentar, reconhecer o seu papel nisso também.
As pessoas acreditam que o racismo é uma coisa muito distante da vida delas. Quando na verdade todas têm alguma coisa para pensar e analisar. Acho que foi isso que você viu na internet. Eu postei um texto dizendo que se você nasceu branco você já foi racista em algum momento. O meu texto tinha um monte de referências, informações, mas as pessoas só leram isso. E me chamaram de racista reversa. Me acusaram de fazer discurso de ódio. Eu não estava com discurso de ódio, eu só queria mostrar que todos precisamos pensar nisso. O negro, que é muito preterido e não percebe isso, e o branco, que oprime. Mas mexer no ego, nos privilégios das pessoas é muito complicado. Uma das meninas que comentou no post disse “eu não tenho culpa pelo aconteceu na escravidão, eu não estava lá”. Eu também não estava lá e sofro até agora. Mas chega uma hora que já não é mais debate, a pessoa só quer ter razão. E isso foi no meu Facebook, na minha página e no Instagram. Não sou de ficar discutindo na internet, mas esse episódio me irritou. Fico pensando nas irmãs militantes, que atuam na internet, o quanto elas sofrem.
Você faz parte de algum grupo/coletivo de mulheres?
Eu participo da Frente Nacional da Mulher no Hip Hop, que é maravilhosa, faz todo um trabalho voltado para o nosso protagonismo. No grupo elas também discutem violência contra a mulher e outras coisas. Eu tenho me conectado e prestado bastante atenção nos coletivos que têm aqui em São Paulo, acho que tenho muito o que aprender e quero muito passar isso adiante.
Que dica você daria para as feministas brancas sobre o feminismo negro?
Acho que leitura, sabe. Tem que colar no nosso rolê. Tem muita leitura disponível na internet. Do mesmo jeito que elas pesquisam sobre feminismo, elas podem procurar sobre feminismo negro. Tem material gringo, nacional, tem jornalistas incríveis escrevendo sobre isso, a própria Djamila na revista Carta Capital. Sempre pontuando coisas, muito didática, uma leitura muito simples. Acho que antes de qualquer coisa, tem de estar aberta para reconhecer a própria condição de privilégio para, então, reconhecer que a irmã negra está sendo preterida também — e mais. Depois disso, aí vai fazer a pesquisa. O problema é que a maioria delas não quer entender.
O caso da Stephanie Ribeiro é reflexo disso. O Facebook tirou a página dela do ar por conta de inúmeras denúncias que recebeu por falar sobre o feminismo negro, em especial sobre a solidão afetiva da mulher negra. Ela escreveu sobre isso na coluna do João Paulo Cuenca, na Folha, na campanha #AgoraÉqueSãoElas.
Como surgiu o seu “RapJazz”?
Olha, eu tenho chip na voz que lembra jazz, mas nunca foi minha intenção ser cantora de jazz. Eu não sonhava nem em ser uma grande cantora. Sou uma grande cantora porque tenho 1,80 m (risos). Ganhei um convite para participar da mixtape do Esquina da Gentil, que era só de mulheres, mas não vingou, porque as meninas não conseguiram entregar as músicas. Elas eram mães e tinham que trabalhar, ralar. Na época, eu tinha largado tudo e voltado para Jacareí. Eu estava na minha cidade com algum privilégio, tinha um tempo que as meninas não tinham para se dedicar à música. Quando ele me mandou os beats para escolher, gostei na hora de um dos primeiros, chamado “beat jazz”. Eu ouvi e achei o pianinho legal. Daí pensei que para um beat jazz eu faria um rap jazz. Eu já tinha um começo de letra no meu caderno, que contava uma história. E associei a ela aquela expressão “isso dá jazz” e mais mil coisas, até chegar ao conceito de que minha vida é um jazz. Por isso é “Meu RapJazz”, porque é a minha vida. E ela não tem parada, tem um refrão que não é refrão. É um jazz, só que rap.
E eu sempre admirei, sim, as divas do jazz, que são negras, maravilhosas, com aquele vozeirão. Nina Simone, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Etta James. Elas são referências, mas que eu vim conhecer bem depois, porque elas não estavam todos os dias na TV. E o textão que Nina Simone dá em “Backlash Blues”? E todo mundo ama Nina! Será que as pessoas ouvem o que ela está cantando? “Strange Fruit”, da Billie Holiday, também. Eu ouvia aquela música sem entender e já me emocionava. Quando eu entendi o que dizia eu fiquei mal. Aí ganhei o livro que conta a história da música e aquilo mexeu muito comigo também – os corpos pendurados, os frutos estranhos. Foi bem próximo do lançamento do EP.
Eu vi também o documentário da Nina. Ela sofreu muito, não foi o que queria ser, que era pianista clássica. Se for parar para ver eu também não fui o que queria ser. Eu queria ser designer de moda e eu não tive essa oportunidade. Eu virei cantora de rap. Eu amo o que faço, mas queria ter tido essa chance. Inclusive, eu acredito que não vou me limitar a isso. Esse é meu trabalho, minha vida, não me entenda mal, mas quero fazer outras coisas, tenho outras ambições. Sou leonina, quero fazer tudo o que der.
Se você tivesse a oportunidade de, enfim, trabalhar com moda, você toparia?
Sim, mas aí seria dentro do meu contexto. E isso vai acontecer em breve, me aguarde!
Também tenho vontade de produzir música. Acho que há uma grande ausência de nós mulheres nisso. Tem mulher no mic, tem mulher DJ, faltam produtoras. Conheço uma que faz as três coisas, a Luana Hansen, que é incrível, bafo.
E quais outras mulheres da música você tem ouvido?
Tenho ouvido muito Oshun e a Little Sims, de Londres, que tem 20 anos — ela produz, ela mixou o EP dela! Duas meninas do Brooklyn, a Chelsea e a Gina, que são incríveis. Do Brasil, eu tenho ouvido muito a Juçara Marçal, a banda Aláfia, que tem a Xênia França deusa suprema, a Janine Mathias e Karol Conká, de Curitiba, e a BrisaFlow, que foi uma das meninas que me introduziu ao feminismo, porque ela falava bastante sobre isso. Ai, tem tanta mina, graças a Deus!