Lou, em 2006
Ele viveu os primeiros de seus 71 anos no lado selvagem da vida, mas passou os últimos evitando tocar “Walk on the Wild Side” nos shows. Lou Reed não veio ao mundo para fazer concessões e sim para atender às suas aspirações artísticas. Não por acaso, aprofundou a conexão do rock com as artes plásticas à frente do Velvet Underground e suas letras são consideradas por muitos algo que pode ser chamado de literatura. Ele veio três vezes ao Brasil: em 1996 (foto), em 2000 e em 2010 — esta última com o projeto Metal Music Machine, quando castigou a plateia com uma experimentação raivosa e barulhenta com distorções, sem nenhum vestígio de algo que possa ser chamado de canção, e presenteou os que aguentaram ficar até o bis com uma versão da singela “I’ll Be Your Mirror”, do cultuado primeiro disco do VU (1967). Daniel Setti resgata um texto de 2006 sobre uma apresentação do saudoso gênio, morto no último “Sunday Morning” (27/10), no Primavera Sound, em Barcelona — em que, como sempre, o velho Lou estava mais interessado em mostrar sua produção recente do que revisitar seus aguardados clássicos. Leia!
Não se sabe ao certo se Lou Reed tem um prazer secreto em manter sua reputação de mito roqueiro difícil ou se simplesmente se comporta como outros tantos sexagenários. O fato é que, por um motivo ou outro, ver o cara em ação é, antes de tudo, divertir-se com uma figura temperamental, sem muita paciência para os músicos da própria banda, excêntrico — que diabos seu mestre de Tai Chi Chuan fazia no palco? — e teimoso (poucos foram os clássicos em seu set list).
Um dos primeiros da programação de um festival-maratona recheado com outras lendas como Big Star e Violent Femmes e sensações modernas como Mogwai, Reed e seus cinco músicos surgem ao cair do dia no agradável complexo à beira mar Parc del Fórum diante de um combinado amistoso de cinquentões calejados e indies recém-convertidos, todos igualmente ávidos por conhecer de perto o porquê de muita coisa no rock ter sido como foi ao longo das últimas quatro décadas.
Malandro, ele entrega o jogo aos poucos, custosamente, e a primeira meia hora é preenchida com canções mais recentes ou menos conhecidas. Até que aparece “I’m Waiting for the Man”, pesadona, arrastada, quase um hard rock. Engraçado ver como o arranjo original do Velvet Underground de quase quarenta anos atrás, sujo e mal gravado, soa muito mais atual que esse, mesmo com Lou improvisando e deslocando melodias tal qual o ídolo Bob Dylan. Cheira a provocação.
Mas se umas encaretam, outras fazem jus à tradição avant-garde de seu autor. É o caso da mântrica “Ecstasy”, com ruídos, climas e até um solo torto de bateria caindo para o samba (!). O velho parceiro Fernando Saunders empunha um dos dois baixos que pontuam a viagem, como fez o Reed produzido por Bowie na gravação de “Walk On The Wild Side” (que ficaria de fora do repertório, é claro), do inesquecível “Transformer” (1972). Ele próprio castiga o P.A. com noises de guitarra que produz enquanto tece comentários ao pé do ouvido dos companheiros ou olha fixamente para um ponto perdido da platéia.
“You know, man, when I was a young man in high school/You believe in or not I wanted to play football for the coach” (“Você sabe, cara, quando eu era um jovem no colégio / Acredite ou não, eu queria jogar futebol para o treinador”). Em tom de confissão feita a velhos amigos vem “Coney Island Baby”, clássica de seu repertório solo, com direito a citação punk do Bolero de Ravel na guitarra.
Completam o pacote reduzido de agrado aos fãs as velvetianas “White Light/White Heat”, também mais comportada do que em disco, e “Jesus”, que gera o praticamente único contato de Lou com o público — em meio a versos como “Jesus, help me find my proper place” (“Jesus, me ajude a encontrar o meu lugar adequado”) um copo cheio de sabe-se lá o que voa e lhe passa raspando. Provavelmente algo a ver com o nome da canção.
Rapidamente puto, logo volta ao semblante impassível, e é em momentos como esse, no qual não desiste por nada de seus dois doces acordes e do canto falado, que Lou Reed faz cair a ficha: a fórmula que deu origem ao indie rock em 1967 ainda é basicamente a mesma que serve para hipnotizar súditos e conquistar uma plateia, sem pressa, em pleno 2006.
(Por Daniel Setti)
*Texto publicado originalmente na Revista Bizz