Elza até o fim

Mais um texto da série #AgoraÉQueSãoElas na Radiola Urbana: Lígia Nogueira escreve sobre “A Mulher do Fim do Mundo”, último e excelente trabalho de Elza Soares. Esse é o primeiro disco só de músicas inéditas da carreira da cantora, que vocifera contra a violência contra a mulher, encarna uma transexual e avisa: “eu vou até o fim cantar”. Esse texto foi publicado originalmente no “Guia da Folha: Livros, Discos, Filmes”. #foracunha #contraPL5069 #elasporelas

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Há um pouco de Elza Soares em cada personagem de “A Mulher do Fim do Mundo”, primeiro disco só de inéditas da artista, que pode ser considerada a dona de uma das vozes mais versáteis da música brasileira. Ela anuncia a sua chegada – ou seria renascimento? – à capela, na abertura, com “Coração do Mar”, um poema de Oswald de Andrade musicado por José Miguel Wisnik. A introdução é delicada, mas ainda assim crua, concreta. A relação com o urbano, explícita na arte da capa, áspera e marcante, vai se tornando mais clara à luz da faixa-título. Na composição de Romulo Fróes e Alice Coutinho, a pele preta e a voz, deixadas na avenida, ecoam a mensagem definitiva: “Eu vou até o fim cantar”.

O 34º álbum da artista, protagonista de uma carreira de 55 anos e uma história de vida marcada por muitas reviravoltas, reúne um grupo de artistas da vanguarda musical paulistana idealizado especialmente para o projeto pelo produtor e baterista Guilherme Kastrup. O núcleo criativo é formado por Kiko Dinucci (guitarra), Marcelo Cabral (baixo), Rodrigo Campos (guitarra), Felipe Roseno (percussão), Celso Sim (direção artística) e Romulo Fróes (direção artística), um conjunto de músicos e compositores ousados que levam a intérprete até o limite, num cruzamento de gêneros que passa pelo samba, pelo rock, pelo rap e pela música eletrônica.

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Nesse cenário apocalíptico, “Maria da Vila Matilde”, de Douglas Germano, traz à tona a mulher que reage às agressões do companheiro violento, enquanto um jogo de guitarras ruidosas pontua o relacionamento cheio de tensão e ameaças. “Luz Vermelha”, de Kiko Dinucci e Clima, pinta um quadro infernal em que Elza profetiza: “Bem que o anão me contou/ Que o mundo vai terminar/ Num poço cheio de merda”. Sem censura ou qualquer amarra, o tesão escorre como lava no samba “Pra Fuder”, outra composição de Dinucci, em que a banda conduz a um transe repleto de volúpia com arranjo de naipe assinado por Thiago França e Bixiga 70.

Em “Benedita” (Celso Sim, Pepê Mata Machado, Joana Barossi e Fernanda Diamant), Elza encarna a transexual que “leva o cartucho na teta”, assim como a marca da violência da vida nas ruas de qualquer metrópole de terceiro mundo. A aspereza do cotidiano ganha uma abordagem carinhosa na crônica de Rodrigo Campos e seu linguajar das quebradas paulistanas em “Firmeza?!”, em que o músico trava um encontro casual com a cantora. A marca registrada do compositor também aparece em “O Canal”, em que arranjos orientais guiam almas perdidas.

A solidão encontra um retrato minimalista com violão de sete cordas, flauta e violinos em “Solto”, de Marcelo Cabral e Clima: “Solto/ Quase outro/ Corpo”. “Comigo”, de Romulo Fróes e Alberto Tassinari, anuncia o encerramento do disco como uma oração. Ao longe, é possível ouvir a voz de Elza ecoar, mesmo depois do final da música. Elza Soares insiste, resiste, renasce mais uma vez. E nos lembra de que, às vezes, ter a coragem de se reinventar pode ser a única saída.

(por Lígia Nogueira)

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